Quando voltaremos a respirar juntos?

por Clóvis Domingos

O que Fazer Daqui para Trás @Guto Muniz

 

Escrevo esse texto buscando na memória a intensidade dos dez dias vividos na 7ª MITsp: muitos espetáculos, encontros, palestras, conversas com diferentes pessoas, deslocamentos na cidade, produção de escritas críticas, enfim, a aventura do convívio humano e artístico. Poderia afirmar que nesse período respirei” teatro e isso foi experimentado de forma coletiva e aconteceu numa acepção dupla: respiração (como ventilação e circulação de matérias, afetos e forças que regulam a própria vida) e respiro (possibilidades de oxigenação e restauração em tempos de autoritarismo e estrangulamento político e social). Sim, nos últimos tempos, a arte vem tentando criar espaços e frestas de respiro e insistindo em trazer um pouco mais de ar diante das ameaças de sufocamento e silenciamento das ideias, das expressões, dos corpos, das palavras e da diversidade de manifestações.

Dessa forma, posso dizer que voltei de São Paulo oxigenado, renovado, nutrido por ter respirado diferentes e instigantes ares junto a tanta gente. Mas o término da MITsp também se transformou no fim (ainda que temporário) de uma experiência fundamental para mim: ser espectador singular e ao mesmo tempo coletivo do acontecimento cênico. A pandemia do  coronavírus chegou para transformar radicalmente o mundo. Os últimos três dias da MITsp, com a necessidade de cancelamento de alguns eventos da programação, já prenunciava que algo muito grave já estava em curso. De repente tudo virou de cabeça para baixo: agora estamos (quase todos, é verdade) em isolamento social, confinados em nossas casas, impedidos de sair pelas ruas, de cumprir nossas agendas e rotinas, de frequentar lugares com aglomeração de pessoas. Com os teatros fechados, todos os espetáculos foram cancelados e as artes da presença agora se tornaram ausência, virtualidade e impossibilidade.

O que escrever daqui para frente?

Só é possível agora dizer daqui para trás?

Perdido em minhas anotações feitas durante a Mostra, passei os últimos dias da quarentena tentando encontrar um caminho por onde começar. Há momentos em que a respiração falta devido à angústia diante de tantas incertezas.

O que escrever daqui para trás?

Então me veio, depois de muito vazio e perplexidade, um desejo meio torto de tentar falar de alguns espetáculos da Mostra a partir de seus modos respiratórios, suas poéticas e temáticas que de alguma forma dialogam com o momento presente, e também trazer a memória de como respirei junto a esses trabalhos. Agora é como se eles me fizessem companhia, e mais, fossem meus aparelhos respiradores que me ajudam a permanecer vivo.

Começo então voltando ao espetáculo O que Fazer Daqui para Trás?, de João Fiadeiro, em algumas de suas dimensões mais fortes: a respiração ofegante, o tempo intervalar, o espaço do palco vazio, os discursos fragmentados, a urgência a que somos condenados a viver. Entre presença e ausência, performers sempre correndo entre o dentro e o fora do teatro e a realidade sendo questionada e problematizada, as tentativas de descrição das coisas, dos fatos e das pessoas que sempre permanecem incompletas num cotidiano absurdo. Também são abordadas as questões do corpo em suas variações, percepções, limites e potencialidades. O que fica? O que resta? Quais memórias e afetos nos mobilizam diante da velocidade do mundo atual? Em qual direção seguir: para frente ou para trás?

No trabalho de Fiadeiro podemos pensar sobre o tempo atropelado para respondermos a todas as demandas que nos chegam. O cansaço nosso de cada dia. O futuro incerto. Tudo em movimento e desequilíbrio e somente o microfone no centro do palco é o personagem estabilizado. Correr, parar, falar, pensar, perder. Perguntar. Desacelerar. A plateia inquieta. A vida acontecendo em tempo real.

Nessa performance o próprio lugar das artes da cena é questionado: o que é um espetáculo? O que estamos fazendo juntos ali? O que significa aquele entra e sai dos artistas? O que aqueles discursos emitidos de maneira sôfrega têm a nos dizer? Entre vigor e exaustão, os artistas resistem, re-existem, re-insistem. Entre uma crise e outra de falta de ar, ainda assim alguma coisa se cria. Nessa correria sem tempo, sem ordem e sem sentido, uma camada espaço-temporal se funda. A necessidade de respirar é o que fica. Aproximando toda essa paisagem para os dias de hoje: como respirar em tempos de pausa forçada? Como ficará o teatro daqui para frente? Para qual direção? A nudez do palco agora vestida pelo silêncio de não se saber quando será habitada por uma nova palavra. Só nos resta, como os personagens de Samuel Beckett, esperar. Respirar…

Já em Contos Imorais – Parte I: Casa Mãe, da artista francesa Phia Ménard, fica a memória de minha respiração suspensa. Nessa performance física, o corpo como campo de batalha frente às forças naturais, as quais não dominamos. Um trabalho sobre a transformação das matérias, a impermanência das coisas, o fracasso das utopias do mundo ocidental. Uma metáfora de uma Europa devastada. Presenciamos a meticulosa construção de uma casa erguida (numa referência ao Partenon grego), a partir do esforço quase sobre-humano da artista. É possível ouvir sua respiração profunda e vigorosa para dar forma ao seu ambicioso projeto. Após a passagem de um tempo largo no qual acompanhamos sua empreitada, finalmente a casa está de pé. Em alguns momentos, há a sensação de que tudo pode se perder, o mínimo gesto pode comprometer a sólida morada que foi bravamente construída pelo suor e agressividade de uma mulher. Lembro que respirei aliviado.

Maison Mere ©️Jean Luc Beaujault

Missão cumprida? Pura ilusão. Bastam poucos minutos para que uma chuva desça sobre o palco. O papelão vai sendo encharcado até que o imponente templo, não suportando mais a força da água que se infiltra, desaba como um castelo de areia. Um céu cinza e fumacento transforma a paisagem num cenário apocalíptico. Tudo o que sobra é um depósito de restos. O Partenon, símbolo máximo da democracia, surge humilhado e afogado em detritos. A artista impassível apenas observa o dilúvio. Diante da catástrofe, não há nenhum tipo de ação e reação. Seria semelhante ao comportamento de cada um de nós diante da miséria que aniquila o mundo? Como mudar as realidades adversas que convocam nossa força e indignação? Estaremos todos indiferentes e anestesiados? Minha respiração se tornou curta. Impossível não pensar nos abrigos improvisados pelos imigrantes impedidos de viver nos países mais ricos e privilegiados economicamente.

Contos Imorais – Parte I: Casa Mãe ficou para mim como o espetáculo mais provocador e emblemático que foi apresentado na MITsp. A imagem final com a exposição das ruínas, em minha leitura, fez e faz todo sentido para se pensar o contexto atual (mesmo antes da pandemia do coronavírus): como lidar com o desconhecido? Diante do mundo em colapso, qual valor tem sido o mais preponderante: o econômico ou o humano? O que fazer diante de tantas vidas desamparadas? Ainda mais agora que um vírus nos ameaça indistintamente, rompendo as fronteiras que sempre construímos para marcar as diferentes nações, eu me pergunto: quem ainda assim estará em melhores condições de continuar vivo? Quem continuará respirando? Que mundo poderá surgir depois de tudo isso?

Como nos lembra o filósofo camaronês Achille Mbembe em seu recente texto intitulado O Direito Universal à Respiração, sobre a pandemia do  coronavírus:

“Antes deste vírus, a humanidade já estava ameaçada de asfixia. Se tiver que haver guerra, portanto, não deve ser tanto contra um vírus específico, mas contra tudo o que condena a maior parte da humanidade à cessação prematura da respiração, tudo o que basicamente ataca o trato respiratório, tudo isso que a longo prazo o capitalismo confinou segmentos inteiros de populações e raças inteiras a uma respiração difícil e sem fôlego, a uma vida pesada. Mas, para sair disso, ainda é necessário entender a respiração além de aspectos puramente biológicos, como o que é comum a nós e que, por definição, escapa a todo cálculo. Ao fazer isso, estamos falando de um direito universal de respiração”.

Isso me leva a pensar em três espetáculos presentes na Mostra nos quais o que se vê em cena são vidas condenadas a uma “respiração difícil e sem fôlego”: Tu Amarás, O Pedido e Burgerz. Em Tu Amarás, o debate gira em torno de um grupo de extraterrestres que se estabeleceram na Terra e como nós humanos agimos diante deles. Em O Pedido, a tônica recai sobre as falhas e injustiças perpetradas sobre a vida dos refugiados em busca de asilo político. Já em Burgerz, um ataque de ódio serve de mote para se mostrar como os corpos trans sobrevivem.

Tu Amarás @Nereu Jr

São trabalhos que falam da questão da alteridade, do medo e da intolerância diante da diferença, da colonização e subalternização do outro, da criminalização do estrangeiro e do diferente como uma espécie de inimigo. Seja a partir de raça, identidade sexual ou cultura, há séculos as sociedades ocidentais vêm sempre buscando colocar o “mal” no outro, e, a partir de violências e segregações, tentam garantir sua supremacia diante dos demais. A proteção e a negação do outro não passam de projeções narcísicas que mais adoecem do que promovem saúde coletiva e planetária, e mais, ferem os direitos humanos, se convertendo em atos de perversidade no qual vidas são ceifadas.

O Pedido (The Claim) @Nereu Jr

Pessoas negras, transexuais, mulheres, pobres, idosos, doentes, trabalhadores espoliados etc., na maioria das vezes, têm sua respiração interrompida por aqueles que acreditam que essas vidas não importam. É como afirma Travis Alabanza, artista transativista, para seu interlocutor numa cena do espetáculo Burgerz: “Eu sinto medo de estar no mesmo espaço com você. Você tem o meu pescoço em suas mãos”. Muitas vidas há séculos são estranguladas sem que haja algum tipo de reação, comoção ou políticas de proteção.

Burgerz @Nereu Jr

Só agora, ao escrever este texto, me dou conta de que tudo não passa de quanto de ar nos é permitido sorver. Uns poucos sempre puderam respirar tranquilamente enquanto para outros isso nunca foi possível. E é no ar que compartilhamos hoje que se encontra um novo vírus que tanto nos amedronta e nos exige não somente cuidados e medidas de isolamento físico, mas também reflexões e transformações urgentes. Que mundo poderá surgir disso tudo? Quais cenas se constituirão?

Para finalizar retomo o título deste ensaio: quando voltaremos a respirar juntos? Não só no teatro, mas nas ruas, escolas, cidades, bares, camas etc.? Sei que essa pergunta não tem ainda uma resposta, mas nela minimamente respira uma fagulha de desejo. O desejo é um dos melhores modos de reencontrar o futuro. Frente à paralisia atual, desejar é uma forma de movimento.

Entre a memória dos espetáculos vistos e a possibilidade daqueles que ainda virão, já consigo respirar um pouco melhor agora.