Artista em foco
por Daniele Avila Small, Luciana Eastwood Romagnolli e Sílvia Fernandes

Entrevista pública com Tiago Rodrigues

Em 2008, você estreou Yesterday’s Men, com Rabih Mroué e Tony Chakar. Mroué foi artista em foco na MITsp em 2017, como você, em 2020. Como é essa parceria entre vocês, no trabalho sobre a linguagem do teatro? 

Algumas das minhas maiores influências não são autores ou autoras que vi e ainda hoje são referências para mim, mas sobretudo artistas com quem trabalhei diretamente. E, da mesma forma que o coletivo belga tg STAN foi minha escola de teatro, o encontro com o Rabih Mroué foi muito determinante no meu percurso. Eu cruzei com ele em 2006 porque um programador, Mark Deputter, achou que seria um encontro interessante. Eu já conhecia o trabalho do Rabih, ele ainda não conhecia o meu; viu alguns espetáculos meus e muito rapidamente decidimos trabalhar juntos. Por um lado, o Rabih tem um trabalho bem assente numa escrita que parte do documental para efabular sobre suas raízes, o território onde cresceu e viveu, o seu território político mas também afetivo, que é o Líbano e Beirute. E eu sempre me vi muito mais como um nômade, como alguém que viaja entre espaços, que quer a cada vez aprender sobre uma realidade nova. Então, esse encontro foi muito fácil, porque encaixamos. Eu era um visitante daquele mundo do Rabih Mroué, e o próprio espetáculo dava nota disso: era a história de um homem chamado Tiago Rodrigues que viajava para Beirute e encontrava vários Tiagos Rodrigues. E acho que foi com Rabih Mroué que aprendi muitas das ferramentas que ainda tenho hoje, de como fazer entrar a realidade nos espetáculos, de como escrever a partir do real, mas oferecendo a liberdade de ficcionar, de manipular e de, através das ferramentas do teatro, interpelar a realidade.

Você colaborou várias vezes com o coletivo belga tg STAN na criação de Bérenice, de Racine, em 2005, e mais recentemente em Como Ela Morre (2017), coprodução entre a companhia e o Teatro Nacional D. Maria II. Como foi essa criação conjunta? 

Eu cruzei com o tg STAN quando ainda era aluno do primeiro ano do Conservatório de Teatro em Lisboa, em 1997. Fiz uma oficina que o grupo conduziu em Lisboa, e foi como uma revolução para mim, foi uma epifania de que era possível um ator ser um criador de corpo inteiro das peças, e não apenas um servo opulente. E, então, alguma infelicidade que eu sentia como aluno da escola de teatro desapareceu muito rapidamente. E foi com esse encontro com o tg STAN que tive a certeza de que queria continuar a fazer teatro. Isso também implicou abandonar a escola de teatro, que nunca cheguei a acabar, e começar a trabalhar muito rapidamente. Logo meu segundo espetáculo como ator profissional foi com o tg STAN, fiz sete ou oito criações com eles. A mais recente foi em 2017 [Como Ela Morre], e foi uma peça muito especial, porque pela primeira vez escrevi para os atores do grupo. E então foi como o completar de um ciclo, poder 20 anos mais tarde voltar a trabalhar com eles, confrontados com aquilo que eu vinha experimentando como dramaturgo e encenador. Foi como devolver à companhia esse impulso inicial que me deram.

Você já esteve no Brasil apresentando trabalhos como Se Uma Janela se Abrisse. Em 2013, no Festival Dois Pontos, o Mundo Perfeito apresentou Mundo Maravilha, peça criada em parceria com o coletivo carioca Foguetes Maravilha. De que maneira esse intercâmbio se deu, na materialidade da criação?

Mais uma vez um diretor de teatro de Lisboa, o programador Mark Deputter, foi fundamental aqui. Estávamos a colaborar com o Mark no teatro que ele dirigia à época, o Maria Matos, que foi durante muitos anos a grande casa de criação contemporânea em Lisboa. E Mark falou que eu deveria conhecer um artista brasileiro, o Felipe Rocha, que certamente teremos muitas afinidades. E eu o conheci quando apresentei Yesterday’s Man no Rio de Janeiro, e desse encontro nasceu a vontade de um projeto em conjunto que imediatamente propus ao Teatro Maria Matos. E a ideia foi, em 2009, fazer um laboratório em que vários artistas brasileiros e portugueses se juntaram, e durante um verão criaram diversos espetáculos. Foi um momento de grande vitalidade, de grande imaginação, com toda a imperfeição do trabalho feito de uma forma repentista. Todas as semanas estreávamos um espetáculo novo. 

Mundo Maravilha surge mais tarde, entre 2012 e 2013, da vontade de criar uma peça com mais tempo, que herda parte do nome da companhia Foguetes Maravilha e parte do nome da companhia que eu tinha à época, Mundo Perfeito. E foi muito interessante, nos processos de colaboração com o Brasil, esse reconhecimento de uma experiência diversa, mas com muitos pontos de contato, que não têm só a ver só com a língua ou um patrimônio cultural partilhado, mas também com o desejo da descoberta, a curiosidade, inclusive a ignorância em relação ao outro. Isso é uma das coisas que eu reconheço sempre que estou no Brasil: estamos tão longe e, ao mesmo tempo, temos tantas coisas nos nossos bolsos que nos permitem dizer que estamos perto. Basta tirá-las dos bolsos, pô-las sobre a mesa e compreendermos que estamos mesmo muito bem próximos.

No espetáculo By Heart, o tema da resistência por meio da memória é essencial e se atualiza na relação com os espectadores, que aprendem de cor um soneto de Shakespeare. Como foi o processo de criação da dramaturgia, que partiu da perda de visão de sua avó para desdobrar-se em várias narrativas literárias? 

By Heart parte de um episódio pessoal. A minha avó foi cozinheira toda a vida numa pequena aldeia de Trás-os-Montes, no nordeste de Portugal, e tinha muito pouca educação formal, mas desde menina adorava ler e promoveu essa paixão nos seus filhos e netos. Um dia ela disse-me que ia ficar cega, tinha 93 anos, e gostaria que eu escolhesse um livro para ela aprender de cor. Ela sempre aprendeu passagens de livros de cor, tinha esse hábito, e queria poder ter um livro na sua cabeça para ler quando os olhos já não funcionassem. Compreendi que o labirinto literário que me levou à escolha desse livro era cheio de histórias sobre a importância de aprender de cor também como gesto de resistência. Não apenas contra totalitarismos políticos, mas até biológicos – a morte. Mas também uma prova de amor pela literatura, pelo poder das palavras. E falava da minha profissão de ator, de teatro, da literatura, da escrita, da razão de criarmos obras de arte com palavras. Descobri que isso poderia ser uma peça de teatro quando me recordei da história de Nadezhda Mandelstam, mulher do poeta russo Osip Mandelstam. Quando ele foi preso pelo regime de Stálin e todos os seus livros e poemas foram confiscados, Nadezhda resolveu ensinar poemas. Criava grupos de dez pessoas e todos os dias ensinava um poema diferente de Osip Mandelstam para que ele não desaparecesse. E essa imagem, com todo o seu poder de resistência, mas também de amor, pareceu-me muito forte. E é por isso que convido dez pessoas a subirem ao palco para aprenderem um texto de cor enquanto levo o público pela mão nesse labirinto literário e autobiográfico que é By Heart​.

A indistinção entre ficção e realidade é uma das características de seu trabalho. Em Sopro você desloca para o centro do palco a ponto Cristina Vidal, ainda em atividade no Teatro Nacional D. Maria II, em Lisboa. Como surgiu a ideia de colocar em cena esse protagonista invisível do teatro? Como foi o processo de trabalho com a autobiografia e a história dessa profissão tradicional?   

Mais uma vez esse espetáculo, Sopro, nasce de um episódio pessoal. Eu estava a trabalhar como artista convidado no Teatro Nacional Dona Maria II, em 2010. Enquanto ensaiava na sala pequena dedicada aos artistas emergentes, espreitava nos intervalos os ensaios da sala grande, com os atores do Teatro Nacional. Pela primeira vez vi Cristina Vidal trabalhar, e era a primeira vez que via uma ponto trabalhar. Para mim, era como ver um fóssil vivo, e portanto fiquei fixado na Cristina Vidal, já não me lembro quem eram os atores. Eu só via a ponto, soprando o texto, virando as páginas, seguindo as cenas, e estava ali cristalizado esse agente da memória dos atores, que ajuda em caso de urgência, mas é também uma espécie de advogado do texto, um guardião do autor. Sendo uma profissão em vias de extinção, carrega em si essa história do teatro, esses séculos de transmissão de sabedoria teatral. E parecia-me que a ponto que está ali, entre os bastidores e o palco, na escuridão, mas sempre à beira dos atores e da luz, era um bom representante de tudo aquilo que é invisível no teatro e daquilo que são as profissões históricas, um patrimônio que, numa sociedade cada vez mais flexível, rápida e super capitalista, desbaratamos, como se já não nos servissem. Mas há ofícios que carregam em si um conhecimento que não podemos desperdiçar, em nome da civilização. 

E, portanto, quando vi Cristina Vidal há dez anos, no próprio dia fui ter com ela e disse: “Gostaria de trabalhar contigo, mas que estivesses no palco e que eu escrevesse um texto para ti”. Cristina riu-se e achou que não era possível. Na época, tentei falar com o teatro e arrancar com esse projeto, mas a direção mudou e a coisa caiu esquecida. Fui convidado, cinco anos depois, a dirigir o teatro Nacional Dona Maria II, e então tinha ao meu lado, como ponto, a Cristina Vidal. E disse a ela: “Olha, um dia destes, antes de me despedirem, ainda vamos fazer aquele espetáculo e vou te conseguir convencer”. Dois anos mais tarde, quando o Festival d’Avignon nos desafiou a criar um espetáculo com o Teatro Nacional, achei que era a oportunidade de falar dessa questão da memória do teatro, mas também da memória na nossa sociedade, e passei algum tempo a convencer a Cristina Vidal, que finalmente aceitou. 

O espetáculo não é biográfico de uma forma fiel, mas se alimenta de muitas das histórias que a Cristina nos contou, a maioria passadas com ela, histórias dos bastidores do teatro. E forma uma figura ficcional que, paradoxalmente, é interpretada por uma verdadeira ponto. Portanto, quando a Cristina diz, no início do espetáculo, “esta é a primeira vez que estou em palco”, efetivamente é o primeiro espetáculo em que ela está à vista do público e é protagonista. Mas muitas das histórias misturam realidade e ficção, e esse jogo é alimentado pelo passado para sublinhar a força do presente.

Há, nas duas peças que você traz à MITsp, um trânsito entre a palavra escrita da literatura no papel, a palavra falada da tradição oral e a palavra encarnada do teatro. Qual a força da palavra para você, em uma sociedade com tamanha desinformação, pós-verdade e fake news que alteram rumos políticos? 

O teatro, precisamente por ser essa assembleia humana, tem um poder de reflexão política muito particular. Não penso que o espetáculo seja necessariamente um gesto de intervenção política, mas acredito que a assembleia do público e dos atores na sala, essa, sim, é eminentemente política e pode ser uma antecâmara para a ação. Quando se juntam pessoas numa sala, há uma cumplicidade e uma empatia que se criam, um fenômeno de transmissão. É verdade que a tecnologia nos permite um acesso muito imediato à informação, mas também à desinformação, e permite-nos um acesso desumanizado, que não é acompanhado desse fenômeno da civilização que é a transmissão. A transmissão implica não apenas aquilo que recordamos e oferecemos, mas também o que esquecemos e adulteramos. Aí, a verdade não é um valor absoluto, mas o encontro e a partilha são. Eu acredito que o teatro pode ser profundamente político e ao mesmo tempo íntimo de transmissão, de encontro, de partilha. 

Em Portugal, há um exemplo da ditadura que eu inclusive usei num espetáculo, que já apresentei em São Paulo, Três Dedos Abaixo do Joelho, baseado nos relatórios da censura ao teatro durante a ditadura em Portugal. Um censor proibiu a peça Desejo sobre os Olmeiros, de Eugene O’Neill, no entanto o mesmo censor permitiu que o filme passasse no cinema. Ele escreveu no relatório que o filme, com Anthony Quinn e Sofia Loren, podia ter cenas eróticas, podia ser imoral, mas era uma história que já tinha acontecido longe e que agora estava ali a ser projetada, não estava realmente a acontecer. Ao passo que, se atores portugueses apresentassem aquela peça em Lisboa à frente de espectadores portugueses, aquilo estaria mesmo a acontecer e todas as pessoas na sala seriam cúmplices. Se estivermos na mesma sala, somos todos cúmplices, e acho que esta é uma definição da força política, humana e íntima do teatro. Por isso, agradeço hoje, em democracia, a esse censor que tentou oprimir o teatro, mas ao fazê-lo me ofereceu um belíssimo elogio.

A preservação da herança cultural europeia representada pelo soneto de Shakespeare em By Heart faz pensar sobre o genocídio epistemológico das culturas indígenas e africanas no processo de colonização do Brasil. Como você pensa esse deslocamento de contexto do seu trabalho quando circula por outros países e culturas?

Uma das alegrias que fui encontrando no espetáculo By Heart é essa capacidade que uma peça criada num determinado contexto histórico, cultural e linguístico pode ter noutros contextos. Quando apresentei By Heart no Canadá, percebi a força com que falava do processo de apagamento da cultura, mas também da existência dos indígenas do território norte-americano; quando apresentei na Austrália, percebi como podia falar de uma maneira tão forte sobre a opressão da cultura aborígene. Percebi que, embora seja um espetáculo profundamente enraizado na herança cultural europeia, apela a princípios humanistas e ideias globais que podem ressoar no olhar e na escuta de outros povos. E isso interessa-me muitíssimo, sobretudo porque nos permite pensar que uma peça tão relacionada com a cultura europeia, a partir do momento que olha a criação artística como uma ferramenta de resistência ao totalitarismo, pode ser uma ferramenta também noutras culturas e noutros contextos. E portanto acho muito interessante como as tradições culturais podem ser reinterpretadas e estar em diálogo, obviamente sem apropriações indevidas, mas que possam existir traduções. A forma como um branco do subúrbio de Lisboa pode ter sido profundamente inspirado por Nelson Mandela ou Patrice Lumumba fala da tradução, fala da escuta, da curiosidade. 

E é curioso pensar como a tradução e a tradição aqui podem não só ser foneticamente e graficamente próximas, mas também criar uma confusão progressista e libertária. Acho sempre interessante quando vejo populistas nacionalistas falarem da tradição como um valor fundamental quando são os primeiros a tentar apagar todas as tradições diversas, e portanto percebemos como o populismo nacionalista não está interessado na tradição, está interessado é no pensamento único monoglota, intraduzível, em vez de permitir, com a tradução, um pensamento de liberdade, fraternidade e solidariedade de uma sociedade progressista onde haja lugar para todas, todos, todes.

Ao longo da sua carreira, você esteve em diferentes funções curatoriais. Como a prática da curadoria interfere no seu pensamento como criador e vice-versa?

Já tive funções curatoriais, mas talvez a experiência mais avassaladora seja a que tenho vivido nos últimos cinco anos e meio como diretor artístico do Teatro Nacional Dona Maria II. E tem sido um enorme privilégio porque me permite, por um lado, continuar a fazer o meu trabalho artístico e, por outro, construir a programação deste Teatro Nacional. Estou permanentemente em diálogo com outros artistas a ver novos trabalhos e a descobrir e a desafiar os próprios limites do meu olhar sobre o teatro, e portanto não tenho dúvidas de que essa abertura, pluralidade e diversidade, que é exigida de um curador do Teatro Nacional, ilumina e põe em causa o meu trabalho artístico e permite-me criar o próximo espetáculo como se ainda não soubesse fazer teatro, e este é um dos meus grandes prazeres: começar de cada vez com a certeza de que ainda não sei.