por Antonio Araujo, idealizador e diretor artístico da MITsp

Uma Mostra não apenas mostra, mas provoca, agita, convulsiona. Cria espasmos e produz sangrias. Confronta, porque é da natureza da arte duvidar sempre do certo, do sólido, do liso e do redondo. Quando mostra, são mais os pontos cegos que são vistos. Se esconde, é apenas provisoriamente, como um golpe dramatúrgico para o que será revelado mais tarde.

Uma Mostra não quer salvar nada nem ninguém. Talvez, na melhor das hipóteses, ajude a nos salvar de nós mesmos. Mas não precisamos ser salvos por nenhuma pátria, família ou religião. A danação pode ser uma opção. Até porque, paraísos assexuados e abstinentes são a própria imagem do inferno. Ao contrário, queremos a gula. Quantos deuses ainda serão criados para mascarar mecanismos de opressão e expropriação? Os nossos deuses, por outro lado, quando existem, nos empurram pra vida, pra festa, pro jogo. Embebedam-nos até chorarmos de rir de nossa tragédia-comédia sem sentido algum.

Uma Mostra não tem nação. Os países que dela fazem parte são os próprios artistas: o país Andréia Pires, o país Tiago Rodrigues, o país Janaina Leite, o país João Fiadeiro, entre vários outros presentes nesta 7ª edição da MITsp. Todos eles são constituídos de uma cartografia sem fronteiras, com muitas beiras e dobras, precipícios e relevos. Em nossos territórios não demarcados, abominamos a ideia de povo, tão cara aos populistas autoritários da vez. Somos multidão heterogênea e acreditamos na partilha do comum. Recusamos também a ideia de pátria, pois cria um pertencimento forçado e postiço que ameaça nossa liberdade de bastardos. Somos filhos pródigos, ovelhas-rosas, enjeitados ou indesejados – mas nossos irmãos, somos nós quem escolhemos. Nas terras que ocupamos, não cantamos hinos nem hasteamos bandeiras, para que o câncer dos nacionalismos morra à míngua e não se multiplique. Nossa arte, portanto, nunca será nacional nem heroica.

Aliás, uma Mostra não tem heróis, ela é construída, pouco a pouco, por um sem-número de pessoas. Trabalhadores como quaisquer outros, ainda que lhes sejam negados ou invisibilizados tal status. Precisamos entender que a cigarra e a formiga habitam os mesmos corpos. E, por não ter heróis, uma mostra é um organismo vulnerável. Pode acabar a qualquer momento, pois aqueles que nela trabalham também se esgotam, se fragilizam, adoecem diante de contextos continuamente adversos.

Uma Mostra não é binária, mas é transdisciplinar e também transgênera. E por isso se coloca contra a conivência e a invisibilização das transfobias diárias. É urgente desnaturalizarmos a violência e o culto à ignorância a que estamos sendo submetidos por quem governa este país. Precisamos combater qualquer poder político que pretenda aprisionar nossos corpos e libidos. Nossos desejos são tão fluidos quanto nossos gêneros. Estamos fora da caixa com muito orgulho. E não aparamos as pontas. Por isso, nenhuma cruzada moralista há de nos converter.

Uma Mostra não tem bíblias nem tábuas de lei. Ela é o exercício da contradição, da falha, do tatear às escuras, da incerteza, do mal-estar. E ainda que a temporada de caça aos artistas esteja em pleno vigor, ao final, desmancharemos os rifles e revólveres. Pois não há Index que nos torne proscritos por muito tempo. As novas inquisições religiosas não resistirão e serão excretadas pelos santos orifícios. E as manipulações conservadoras hipócritas, que chamam de “curadoria” o que na verdade é “censura”, serão desmascaradas.

Que uma Mostra, talvez essa, possa contribuir para que saiamos da inação hamletiana rumo ao enfrentamento da barbárie. Que os espetáculos nela apresentados, nos ajudem a ultrapassar a depressão coletiva, o anestesiamento, a indiferença e a perigosa condescendência. Que produza antídotos contra a paralisia e outras catatonias. A economia não pode ser justificativa para o obscurantismo. Em nenhuma hipótese. Portanto, que nossos corpos se impliquem, que nossas vozes se ativem, que nossos sentidos se ampliem e que tudo isso seja, então, trazido à mostra.

O terceiro sinal acaba de soar. Bem-vindas e bem-vindos à ação!