Teatro, ensino e aprendizagem
por Renan Ji
Artista em foco da edição de 2020 da MITsp, o dramaturgo português Tiago Rodrigues apresentaria dois espetáculos na mostra: By Heart (2013) e Sopro (2017). Devido a sanções decorrentes da expansão da Covid-19, apenas o primeiro espetáculo chegou a ser apresentado, não permitindo a visão do trabalho do artista pensada originalmente pela curadoria do festival. No entanto, a estreia de By Heart reverberou muitas ideias por entre as diversas instâncias de debate possibilitadas pela MITsp – entrevista pública com o artista, diálogo transversal e prática da crítica –, trazendo à tona elementos latentes na proposta cênica deste espetáculo. Quando confrontado com noções mais ou menos correntes no público cativo de um festival como a MITsp, By Heart foi analisado e questionado à luz do pensamento feminista, negro e decolonial, o que promoveu tensões e choques com a sua dramaturgia.
Dentro desse contexto, gostaria de pinçar um elemento específico de By Heart, que se dá a partir da figura do encenador e dramaturgo Tiago Rodrigues como catalisador da cena. Ele se coloca como líder ou condutor de uma experiência teatral com um objetivo definido: a memorização de um soneto pela plateia. A partir desse dado, o espectador pode reconhecer concretamente se alcançou um determinado resultado nessa interação, o que implicaria dizer, no senso comum, que aprendeu alguma coisa nessa experiência. Alguns desdobramentos interessantes surgem dessa possibilidade: há algo a aprender no teatro? O teatro pode estabelecer uma relação pedagógica com o seu espectador? Além de By Heart, veremos que trabalhos como ORLANDO, Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe e Stabat Mater poderão ser exemplos de situações em que podemos ensinar e aprender no teatro.
Decorar ou recordar
Um dos apelos de By Heart é a brincadeira de decorar. Tiago Rodrigues convida dez pessoas ao palco e propõe a elas o desafio de decorar o soneto 30 de Shakespeare, a ser recitado para a plateia no fim do espetáculo. Os acertos e erros de cada participante imprimem uma feição própria a cada apresentação, sendo muito bem conduzidos cenicamente por Rodrigues, sempre com uma dose inequívoca de humor. Dado que a própria plateia acaba tentando reproduzir mentalmente a dinâmica de memorização do soneto, forma-se um círculo performativo entre ator e público, espécie de elo comunitário que une todas as pessoas do teatro num mesmo ritual cênico.
Dado que encena essa peça desde 2013, podemos presumir a excelência técnica de Rodrigues: ele é rápido, cada piada tem um timing preciso. Contudo, me parece que há algo previsto ou programado num processo que apenas aparenta ser espontâneo. O performer de By Heart sempre parece ter uma carta na manga, um repertório de procedimentos e ganchos retóricos que garantem um modus operandi da cena. É como se, a cada apresentação, um mesmo efeito fosse alcançado por vias ligeiramente diferentes, com diferentes chaves acionadas, tendo, apesar da ligeira variação, sempre o mesmo resultado.
Como vimos pelos textos de Laís Machado e Rodrigo Nascimento na Prática da Crítica, foi possível ver na MITsp como esse mecanismo cênico pode emperrar diante de certas intervenções do público. A impressão que tenho é a de que a pergunta de uma espectadora – sobre a ausência de autoras mulheres no cânone abordado por Tiago Rodrigues – desmontou um roteiro prévio, como se uma espécie de plano de aula de literatura não pudesse mais ser seguido à risca. Isso me motivou a repensar a dramaturgia do espetáculo, recuperando a integridade de sua proposta e seus resultados aplicados a mim como espectador.
O procedimento central de By Heart é uma estratégia de memorização que frequentemente nos reduz a balbuciar sílabas e versos, quase um bê-á-bá, buscando sistematizar a enunciação automática de um verso qualquer – que poderia ser de Shakespeare ou qualquer outro escritor. Rodrigues utiliza técnicas de memória que se baseiam em estímulos visuais performados por ele, criando gatilhos mentais que auxiliam na recitação do soneto. Em vez de estabelecer um engajamento afetivo ou intelectual junto ao soneto 30, criando uma motivação interna ou um jogo que produza a assimilação sonora, temática e interpretativa do poema, desenvolvemos uma inteligência de certa forma behaviorista, confiando no automatismo das indicações de Rodrigues para obter resultados rápidos e condicionados. Quem não acompanha a lição fica como o senhor no dia em que assisti ao espetáculo, encarregado de memorizar logo o último verso do soneto, gaguejando sob a pressão de declamar o final do exercício. Acho que eu também seria um mau aluno nessa proposta.
Se estivéssemos numa aula, Tiago Rodrigues poderia ser aquele professor que encanta gerações de alunos, produz piadas inesquecíveis, cantarola os afluentes do Amazonas e faz rap com os elementos da tabela periódica. A quem não acompanha a aula, resta fazer conta com os dedos, deixar cola na carteira, memorizar fórmulas que não entende e, frequentemente, tirar nota baixa. Decorar Shakespeare, nesse sentido, está mais próximo da decoreba do que da recordação; estamos mais próximos dos bancos escolares tradicionais, e cada vez mais afastados da avó de Rodrigues, Cândida, leitora voraz que, na iminência de perder a visão, desejava guardar um livro inteiro na memória. Se fosse professor, Tiago Rodrigues ganharia muitos alunos com seu carisma, piadas prontas e aparente eficiência do seu método. Mas qual seria o tipo de educação que caracterizaria sua didática? Que tipo de inteligência seria promovido pelas suas aulas?
Teatro e sala de aula
Comparar By Heart a uma aula pode ser um tanto redutor para a experiência proporcionada pela peça. No entanto, é fato que o artista deseja resgatar uma ideia de memória utilizando uma antiga técnica escolar de decorar textos, da mesma maneira que um professor de física ensina a calcular o movimento de um objeto a partir de uma fórmula matemática prévia. Cabe perguntar: o que aprendemos da literatura ou da física em procedimentos como esses? Independentemente de se tratar de uma proposta teatral ou de um método pedagógico, questionar um procedimento – seu resultado e eficácia – significa perguntar-se acerca do tipo de relação intelectual que se estabeleceu naquela experiência; se ambos os polos da relação (artista e espectador; professor e aluno) se encontram numa hierarquia de opostos ou se são correspondentes complementares; ou, ainda, se a abordagem escolhida se coaduna ao desenvolvimento do tema proposto. Salas de teatro e salas de aula são espaços em que pensamento e performance estão profundamente implicados. Nelas há atuação e diálogo, confronto de ideias e produção de conhecimento, assim como afetos e afetações de toda a sorte, que muitas vezes defletem as intenções originais, sejam as de um dramaturgo, sejam as de um professor. Nesse sentido, a proposta que Tiago Rodrigues apresenta ao espectador pode ser analisada como uma atividade intelectual dirigida a outrem por sua persona cênica. Ela pode ser vista como ocasião para uma experiência de aprendizagem e conhecimento, na qual determinadas faculdades mentais são convocadas a lidar com problemas ou questões – que podem ser abordados de forma mais ou menos pedagógica ou racional.
Trata-se de enxergar um espetáculo teatral a partir da expectativa de “uma aventura intelectual”, como diria Jacques Rancière em O Mestre Ignorante: Cinco Lições sobre a Emancipação Intelectual (ed. Autêntica, 2018). Diante de uma peça teatral ou “um problema da atualidade” (ou qualquer outra expressão dos currículos escolares que o valha), estamos diante de uma situação que demanda o exercício intelectual e o diálogo com alteridades, de forma a estabelecer relações entre diferentes sistemas de linguagem. Ou seja, o fenômeno teatral visto como experiência que exige a capacidade de lidar com situações opacas à nossa racionalidade, que vão contrapor o desafio de decodificar linguagens e, talvez, solucionar impasses.
Tal visão não deve ser confundida com uma pretensão intelectualista, típica de uma crítica teatral concebida como campo de especialização e hierarquização dos saberes, a partir dos quais se regulariam social e epistemologicamente os discursos sobre o teatro. Ao contrário, busco uma formulação bem concreta dessa relação tensa entre espectador e obra, uma que possa enfocar a dinâmica complexa de pensamento e ação que se desenrola nesse processo. Como diria Daniele Avila Small, no livro intitulado O Crítico Ignorante – Uma Negociação Teórica Meio Complicada (ed. 7Letras, 2015):
“Um trabalho teatral, por exemplo, poderia ser um todo, um círculo, que qualquer espectador pudesse ver, descrever, comparar e questionar. A comparação pode ser feita com qualquer coisa feita pelo homem. Basta que se reconheça a inteligência criadora de um espetáculo teatral como da mesma natureza de outra que construiu uma casa, pintou um quadro, cozinhou uma comida ou criou um outro espetáculo teatral”
Sugerindo a copertinência entre um método pedagógico revolucionário do século XIX e a crítica teatral, Daniele Avila Small em seu livro nos mostra como é possível ver o teatro como uma experiência de exercício intelectual que possibilita conhecer algo ou aprender algo da realidade. E não se trata de uma abordagem que faculta apenas ao crítico de teatro uma relação intelectual com a cena: a crítica seria apenas uma dentre as várias operações de linguagem acessíveis a qualquer espectador que esteja disposto a se aventurar intelectualmente diante de uma peça. Como diria Small, “Um espectador de teatro não tem o que ‘aprender’ com uma peça de teatro, mas tem o que ‘apreender’” – e entre essas duas operações (a primeira delas geralmente atribuída ao estudante) estão em jogo as mesmas ferramentas da inteligência, além da disposição maior ou menor de se abrir ao que o outro tem a dizer ou mostrar.
Ser espectador-aluno
Nessa perspectiva de um “teatro-aula”, gostaria de estabelecer a postura de alguém que tem algo a aprender ou a conhecer quando se defronta com um trabalho teatral. Nessa perspectiva, um professor ou artista da cena me desafiariam a pensar a partir da singularidade de seu sistema de linguagem. Com a honestidade (às vezes de troça, mas não seria o meu caso) que vemos frequentemente nos estudantes, tentarei dizer se naquela proposta intelectual eu “aprendi” algo ou não, ou seja, que relação intelectual me foi possível estabelecer com a peça.
Por exemplo, acho que não seria o melhor dos alunos na aula-peça de Tiago Rodrigues, pois teria dificuldade em decorar versos e entender a leitura em voz alta de certos textos. Na verdade, identifico nessa estratégia cênica um descompasso com o contexto afetivo e intelectual que seria o seu mote, a saber, a importância vital da literatura como resistência a contextos políticos de exceção. A linguagem teatral utilizada para tratar do tema de By Heart não ensejou em mim a disposição intelectual para lidar com a memória como sobrevivência cultural e resistência humana face à adversidade.
As perguntas impertinentes dos alunos chatos às vezes podem abrir fossos no edifício teórico construído pelos professores: por que decorar um verso ou um soneto de Shakespeare me torna mais próximo de Homero e da literatura? Por que decorar algumas palavras e as ingerir impressas num papel comestível – uma das etapas da dinâmica de By Heart – me tornaria um leitor melhor? Por que o professor não cita autoras mulheres? Perguntas como essas muitas vezes podem mostrar como alunos podem contrapor impressões (ou até mesmo lições) aos seus professores, que, se quiserem ouvir, poderão perceber como determinadas propostas talvez não atinjam exatamente o objetivo pedagógico que intentam.
Liberdade e hierarquia
Quando indagado por uma participante sobre a ausência de mulheres no cânone literário que aborda na sua peça, Tiago Rodrigues se desembaraçou com acidez: “Este é o meu espetáculo”. Essa tirada é previsível no estilo cômico de sua performance na peça, mas talvez essa saída tenha mostrado que a liberdade e a proximidade entre aluno e professor é somente aparente em By Heart. O professor-ator simula uma cumplicidade com o aluno, mas, quando este ultrapassa o limite subjacente, a distância hierárquica entre os sujeitos da cena se revela.
Alguns casos, até mesmo as propostas performáticas mais horizontais e livres em relação ao espectador, mostram que nem tudo é o que parece. Um professor pode dizer que dá total liberdade de expressão aos seus alunos, mas basta que um se sinta mais à vontade para que se perceba que a coisa não é tão livre assim. Em ORLANDO, por exemplo, um dos trabalhos que compunham a mostra internacional de espetáculos da MITSp, observamos uma dinâmica que parece incentivar a livre interação com a instalação circular que lhe dá suporte. Mas espectadores-alunos desavisados sempre surgem para mostrar que alguns limites não devem ser ultrapassados.
ORLANDO fala de novos modos de existência, cujo caráter visionário aponta para uma era pós-binária que supera os dualismos de raça, sexualidade, gênero e classe. Para tal, a performance investe no aspecto imersivo e meditativo da experiência, buscando uma vibração específica a partir da música experimental e dos corpos em movimentação lenta e dilatada no tempo. A diretora Julie Beauvais nos cumprimenta no início da apresentação e afirma que é permitido entrar e sair do espaço teatral, deambular pelos sete telões em círculo, apreciar as projeções em conjunto ou isoladamente, deitar e/ou sentar no chão com almofadas. Beauvais parece indicar que a experiência de ORLANDO se dá de acordo com o ritmo de imersão de cada espectador.
Cada um deve ajustar sua sensorialidade na tentativa de contemplar um outro regime de vida, uma nova possibilidade de ver e sentir o mundo. A proposta de inaugurar uma nova era existencial pressupõe, logo, uma ética de espectador mais distensa e aberta. Entretanto, andando por fora do círculo de telões (talvez em ritmo um pouco rápido demais para a música incidental da peça), passei algumas vezes no espaço entre os projetores e telões de modo que minha sombra quebrava subitamente a projeção. Percebi então que talvez estivesse rompendo com um protocolo do espetáculo, pois esse tipo de intervenção não me parecia condizente com o caráter contemplativo das imagens. Mas isso não era algo óbvio, pelo visto: percebendo as nossas sombras como interação produtiva da peça, uma participante passou a manipular a sombra de suas mãos no projetor, interferindo criativamente no vídeo dos performeres, mas foi logo coibida pela produção.
Em ambos os casos, espectadores-alunos mais desafiadores ou distraídos podem mostrar que devemos inferir (devemos?) determinados protocolos numa dada experiência, ou seja, regras que não se manifestam na linguagem, mas estão ativas na atividade proposta. Num trabalho teatral, para além de mandamentos óbvios da conduta social, em que medida o implícito atua como fator de perturbação de uma performance ou como gerador de novas configurações cênicas? Com esses episódios, não busco transformar as peças mencionadas em exemplos de autoritarismo. Porém, a irrupção de certas regras ou protocolos latentes muitas vezes mostra que determinadas propostas teatrais apenas aparentam uma relação mais horizontal com o espectador, quando na verdade o espetáculo não lida com eventuais brechas – criadas por participantes mais (ou menos) engajados na interação teatral, ou que simplesmente levaram ao pé da letra aquilo que concluíram como orientação geral da peça.
Aula tradicional
Talvez a solução seja ter regras evidentes. Todo professor sabe que a liberdade e o humor que permite aos seus alunos têm um limite, e este deve ser claro na medida em que é sempre testado. Um trabalho teatral que possui regras muito diretas – mas que atuam como balizas seguras de uma relação pedagogicamente bem-sucedida entre espetáculo e espectador – é Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe. Trata-se de uma peça com parâmetros claros: exige-se do espectador-aluno bom comportamento, silêncio, atenção e respeito à hierarquia.
Casa Mãe, performance de Phia Ménard e Jean-Luc Beaujault, com atuação e cenografia de Ménard, exige de nós a postura de um obediente aprendiz de artesão, que deve anotar e acompanhar minuciosamente o trabalho manual do seu mestre. A mestra, no caso, constrói uma réplica do Partenon grego, que apresenta grandes dimensões em comparação com os espaços teatrais convencionais. O grande artefato é erguido com ajuda de estacas e fita adesiva, ao longo de etapas meticulosamente seguidas por Phia Ménard, que sozinha vai compondo a estrutura e guiando o olhar do espectador passo a passo.
Aulas expositivas geralmente são mal vistas ou criticadas por uma pedagogia que promove a autonomia e a participação por parte dos alunos. De fato, à primeira vista, Casa Mãe pode incomodar o espectador mais inquieto por se assemelhar a um mero exercício autocentrado. Porém, aos poucos, a movimentação resoluta e confiante de Ménard, assim como seu projeto “arquitetônico” levado a cabo de maneira lúdica e rigorosa, captaram a minha atenção e de certa forma resgataram o fascínio que professores despertam em suas audiências nos momentos de maior inspiração. Uma dimensão primitiva do ofício de professor parece ter sido recuperada: a capacidade de despertar a concentração dos pupilos, que confiam no caminho intelectual e na liderança de sua mestra, remetendo ao gosto de observar um saber-fazer que traz de volta o trabalho artesanal de outros tempos e espaços da história cultural.
As implicações geopolíticas de Casa Mãe são inúmeras e se encontram entretecidas no figurino, nos símbolos que remetem à Grécia antiga e atual e no desfecho sacrificial que demarca a dissolução de um projeto que prometia reerguer a Europa das cinzas do pós-guerra. No entanto, retenho a concretude da minha relação estabelecida como espectador-aluno: como aprendizes encantados pelo professor, acompanhamos a criação de um objeto e a partilha de um projeto de conhecimento. Nem sempre é possível tamanha dedicação intelectual nos dias de hoje, mas quando o foco, o interesse e a disposição cooperam, grandes realizações podem acontecer. E não importa se elas serão esquecidas, ou que o projeto seja demolido pelas tormentas sociais, como parece sugerir o fim da peça. Uma das graças da aventura intelectual e do trabalho manual é começar do zero.
Fontes e pesquisa
Assisti a Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe bem alheio ao contexto de pesquisa da performance, concebida para a Documenta Kassel de 2017. No pensamento-em-processo do espetáculo, que se deu após sua estreia na MITSp, muito foi esclarecido acerca das relações entre a Atenas arcaica e a contemporânea, o simbolismo dos materiais utilizados em cena e o figurino de uma espécie de deusa Atena punk. Esse fato me remete a mais uma possibilidade de postura pedagógica possível num trabalho teatral: o espetáculo que abre frontalmente ao público suas frentes de pesquisa, subvertendo a visão tradicional da cena como produto último do trabalho artístico.
Como um professor que cria projetos e dispõe as diversas camadas de abordagem de um problema complexo, a artista Janaina Leite apresentou seu mais recente trabalho na MITBr e fez a desmontagem do espetáculo como pesquisadora em foco deste ano. Diferentemente de Casa Mãe, Stabat Mater é uma peça-processo que exibe deliberadamente um mosaico de questões teóricas, sociais e religiosas acerca do feminino, costuradas sem a intenção de fechar uma conclusão ou um panorama coeso de representações da mulher. Janaina Leite parte de vivências traumáticas de sua biografia e busca reencená-las agregando outras camadas de sua pesquisa acerca da imagem da Virgem Maria e da misoginia da indústria pornográfica.
A dramaturgia de Stabat Mater avança e recua constantemente na tentativa de reencenar o trauma como forma de o indivíduo se reapropriar da narrativa em que foi subjulgado, para então se tornar sujeito de sua história. Janaina Leite foi vítima de estupro na adolescência e, no processo de elaboração do trabalho, questiona o papel de sua mãe e da cultura patriarcal tanto nas marcas psíquicas provocadas por esse evento, quanto na possibilidade de cicatrizá-las por meio da arte. O trabalho agrega desde as representações mais arcaicas do feminino até as mais aviltantes da pornografia contemporânea para refletir como o corpo da mulher é atravessado por vetores diversos, frequentemente sob o espectro da violência.
Stabat Mater é uma composição “biográfico-teórico-teatral” que desbrava imaginários e práticas sociais, buscando plasmá-los em determinados rituais cênicos que não necessariamente exorcizam tabus, mas somente apontam para novas complexidades. O espectador oscila entre testemunhar um rito terapêutico e observar os limiares éticos e corporais de uma performance, na medida em que a própria mãe da artista está em cena, junto a um ator pornô que supostamente protagonizará uma cena de sexo explícito com Janaina. Os fracassos e os limites da representação são constantemente postos à prova, e o espetáculo se desnuda ao trazer para o próprio palco os impasses, fracassos e conceitos teóricos que movem o trabalho artístico.
O traço de incompletude e diversidade de temas, decorrente de um pensamento processual que constitui a própria matéria do espetáculo, se radicaliza na desmontagem realizada após as apresentações de Stabat Mater na MITBr. Assumindo mais plenamente a condição de artista-pesquisadora, já dentro da programação dos Olhares Críticos, Janaina Leite reuniu suas anotações, buscando atar determinadas pontas, mas, principalmente, relatando as interrogações que pairam sobre a peça, reconhecendo os pontos em aberto e os horizontes a serem descortinados pela pesquisa artística. Mostrou como Stabat Mater é produto de uma equipe numerosa de mulheres e como esse trabalho se debruça não apenas sobre as suas vivências pessoais, mas fala de representações constitutivas de todos os corpos femininos.
A artista partilha de uma espécie de honestidade intelectual com seu espectador, uma vez que tanto o espetáculo quanto sua desmontagem não buscam conclusões fáceis sobre as questões que encaram, aceitando as brechas ou lacunas – da memória pessoal, da pesquisa teórica ou acerca da própria condição social da mulher – que persistem no universo da peça. A função do professor-pesquisador, neste caso, é mostrar que os temas se impõem de maneira vital e complexa, exigindo o contínuo exercício de depuração e reflexão, num constante trabalho intelectual que não tem desfecho certo ou definido. Enfim, atividades de pensamento e produção de conhecimento que perduram enquanto fizerem sentido para o investigador e para os outros que o cercam. O objeto final da pesquisa não precisa ser o derradeiro e definitivo; o que importa é, retomando a expressão de Jacques Rancière, a “aventura intelectual”, tanto para professores e alunos, como para artistas e espectadores.
Volta às aulas
O exercício de comparar o espectador a um aluno não deseja equiparar teatro e escola como espaços sociais com funções semelhantes. Contudo, escolas poderiam ser mais criativas, lúdicas e propositoras de aventuras intelectuais a partir de materiais cênicos; e o teatro poderia ser mais reconhecido como lugar legítimo de pesquisa, formação e inquietude do pensamento. Nesse sentido, teatro e escola são locais para aventuras intelectuais que podem ser lugar de experimentação, conhecimento e motivação para solucionar problemas do mundo.
De todo modo, quando reflito sobre as possibilidades de aprendizagem e conhecimento em propostas como decorar versos, contemplar imagens, acompanhar projetos de construção e pesquisa – penso nesse fenômeno fugidio e imprevisível que são a aula e o espetáculo teatral. Por mais que teorizemos sobre metodologias da sala – de aula e de teatro –, existe um quanto de imprevisibilidade em relação aos conceitos apreendidos, aos desdobramentos intelectuais possíveis e a como cada sujeito pode reagir à aproximação do outro.
Esse grau zero irredutível que antecede qualquer aula ou peça causa angústia na medida em que percebemos estar sempre num campo minado. Por isso, não desejo estabelecer um juízo de valor sobre as peças comentadas. Trata-se antes de promover uma resposta vinda de um suposto aluno-espectador, que entende o teatro como um lugar de saber e busca responder a ele como tal. Já aprendi muita coisa no teatro. Cabe voltar a ele – e à escola também. Talvez exista aí um eterno retorno que esteja sendo negligenciado nos dias de hoje, com tantas pessoas (até presidentes da República) duvidando da ciência e do conhecimento, colocando a si e a outros em risco, tripudiando de maneira vil sobre a vida de muitos.