Entre o concerto e o desconcerto

por Laís Machado

By Heart @Guto Muniz

Ao chegar para assistir By Heart, o público encontra o português Tiago Rodrigues sentado em um banco de madeira lendo um livro, ao lado de dez cadeiras vazias. O artista convida dez pessoas do público para as ocuparem e informa a todos que eles sairão do espetáculo sabendo de cor o Soneto 30 de William Shakespeare.

A partir do compartilhamento da relação com sua avó, uma mulher reconhecida por ele como uma leitora voraz, a quem sempre presenteava livros e que se encontrava às vésperas de uma cegueira permanente, Rodrigues, autor e ator da peça, reflete sobre a memória e o próprio ato de decorar um livro, um poema ou qualquer outro tipo de literatura como um ato de resistência. Guardar a informação no espaço mais seguro que é o coração e sua capacidade de afetar e ser afetado. A protegendo de um roubo ou qualquer modo de extração que poderia ser engendrado por qualquer regime autoritário que possa vir a ser (ou já foi) instalado em qualquer lugar do mundo.

Navegando entre o ensaiado e o improviso Tiago Rodrigues ensina aos seus “convidados” no palco os versos do soneto, criando partituras corporais para cada verso enquanto os rege. O que torna divertido para as pessoas que estão na plateia acompanhando o “ensaio” deste coro recém-formado, mas que também serve de dispositivos para decorar as palavras para eles, que tem a missão de declamá-lo completo. Entre relatos autobiográficos e a ficção, Rodrigues compõe um texto com citações de Pasternak, Mandelstam, Bradbury e Steiner, todos analisando e ou dissertando sobre a memória e a ausência. By Heart é formado por uma estrutura muito simples, mas cuja presença do público em um espaço tão visível se transforma num frescor e num risco que reforçam a radicalidade do posicionamento da peça diante da experimentação das relações. Mas, tal radicalidade parece oscilar no decorrer do acontecimento. Tanto no modo cerebral com o qual os convidados são conduzidos a decorar o soneto, depois de uma defesa pelo de cor (de coração). Quanto no nível de abertura para com o que estes “convidados” tem a expressar durante seu processo de aprendizagem do soneto.

Os que estiveram no Teatro da FAAP na última terça feira, por exemplo, assistiram a dois espetáculos, um antes e um após a intervenção de uma mulher que estava no palco e o questionou: “Você lembra de autoras mulheres? Sua avó leu algum livro escrito por mulheres?”. Esta intervenção abrupta (que o interrompeu no meio de uma fala) e a posterior resistência de Rodrigues ao que ela colocava, destacam algumas questões sobre a investigação a respeito da memória, bem como sobre a estrutura da obra em si.

Esta pergunta à primeira vista pode soar ingênua no contexto da peça. Uma espécie de inserção deslocada de uma “pauta identitária” em um recorte que se “pretende” universal como a memória. Mas o desconforto que seguiu nos faz refletir sobre a limitação de uma abordagem universal da memória sem o recorte de a qual contexto pertence esta acepção de memória. Além do mais, a própria estrutura da obra gestou essa intervenção, levando em consideração a proximidade e intimidade que relatos autobiográficos tendem a causar, a fazendo se sentir à vontade para colocar uma angústia, que provavelmente a esta altura da peça, já estava sendo alimentada durante algum tempo, ao se ver “exposta” no palco, confrontada até ali apenas com referências masculinas. Não havia deslocamento em sua pergunta. Que é importante destacar foi elaborada de maneira pessoal – “você lembra de alguma escritora? A sua avó leu mulheres? ”. E poderia ter sido encarada não como um ataque ou descrédito ao que havia sido compartilhado até ali, mas um diálogo entre duas pessoas que se dedicam ao estudo da memória. E no caso da peça, ao particular interesse de como o nosso coração organiza o que lembramos.

Uma resposta como “estamos falando de um século patriarcal” não é satisfatória para justificar essa ausência. Levando em consideração que, todavia, ainda nos organizamos e vivemos em uma sociedade patriarcal. Além do mais, não podemos inferir que não houve produção feminina e que por isso não se fala. A questão é que não se quer dar espaço para quem guardou estes livros e poemas na cabeça, no coração ou numa caixa de madeira para protegê-los. Esta mulher acabou expondo uma fratura no acontecimento e a reatividade de Tiago Rodrigues em relação ao que havia sido exposto foi desconcertante e sentida pela plateia de maneira geral – a mesma que parecia estar em suspensão assim como a questão que continuava pairando sobre o palco.