Descompasso, cansaço, distopia, fim

por Rodrigo Nascimento

Dentre as muitas expectativas alimentadas por quem se engaja e acompanha uma mostra internacional de teatro, sem dúvidas uma das mais frequentes é aquela que se assemelha a uma espécie de angústia da novidade. Um desejo de acompanhar aquilo que se faz lá fora, aquilo que de algum modo a cena local ainda não absorveu ou aquilo que, ao menos, possa apresentar uma visada diferente em relação a problemas que já experimentamos. Durante muito tempo, tal angústia esteve fortemente relacionada a um sentimento de atraso cultural, como se as produções locais sempre estivessem aquém do desenvolvimento da cena internacional – em especial aquela de metrópoles como Nova York, Paris, Londres ou Berlim.

Em seu famoso ensaio Nacional por Subtração, Roberto Schwarz desenha um perfil dessa sensação frequentemente experimentada por brasileiros e latino-americanos, qual seja, a do caráter inautêntico ou imitativo de nossa vida cultural. Isso estaria ligado a um sentimento de descompasso, ou mesmo de contradição, entre a realidade local e o prestígio de determinadas ideologias ou linguagens nos países que nos servem de modelo. Algo que iria do bizarro Papai Noel que todos os anos se encharca de suor no calor dos trópicos à constante busca por novas formas, fazendo com que rapidamente uma teoria ou linguagem cênica seja substituída pela nova moda internacional antes mesmo que tenha a oportunidade de amadurecer por aqui.

Se de algum modo esse sentimento de descompasso e atraso perdura, não se pode dizer que ele tenha a mesma feição que assumira nos debates sobre um teatro nacional nos anos 1950 ou 1960. Sabemos que ainda hoje é difícil para a historiografia do teatro definir os marcos do processo de modernização da cena brasileira. Para alguns, como Sábato Magaldi, ela estaria na ruptura estética que deu proeminência ao encenador, a montagem de Vestido de Noiva, por Ziembinski, em 1948. Para outros estudiosos, como Décio de Almeida Prado, Iná Camargo Costa e Tânia Brandão, ela estaria na paulatina profissionalização da cena (em termos de luz, cenografia, direção e dramaturgia) ao longo dos anos 1950 e 1960. De qualquer modo, por trás de todas as leituras, seja a que preza pela ruptura, seja a que preza pela evolução, vigora o esquadro europeu do que seria uma cena propriamente moderna. São temporalidades em confronto que não deixam de revelar a nossa angústia em busca de um modelo sempre por alcançar.

Mas ainda que muitos dos problemas centrais continuem (financiamento reduzido e sazonal, pouca regularidade na distribuição de infraestrutura, poucas políticas de formação de público etc. – elementos de algum modo determinantes na modernização da cena europeia), não se pode dizer que hoje – em especial nas capitais – não tenhamos uma tradição teatral consistente, com grupos e teorias de relevo internacional, bem como pesquisa de linguagem com razoável nível de amadurecimento. De qualquer forma, a despeito da complexificação da cena teatral urbana atual, não mais capaz de ser pensada dentro de uma polarização simplificada entre uma periferia atrasada e um centro avançado (parece mais do que evidente hoje que as formas mais avançadas de sociabilidade e consumo também se beneficiam da perversidade do atraso), perdura certa percepção de que a novidade – percepção sempre relacional dada em função de um confronto de temporalidades – é sempre bem-vinda e vem de lá.

Essa angústia também deriva de um impulso vanguardista que o século XX reboa, apesar de já ter dado claros sinais de esgotamento (quando o desejo é só de superar o antigo, qual o sentido ético do movimento? Não seria a vanguarda a máquina de uma linha temporal progressiva insustentável que agora revela seu cansaço?), como também da adesão algo constrangida e muitas vezes não reconhecida ao tempo da mercadoria – que só sobrevive por alimentar uma máquina de novas necessidades. Aliás, muitos festivais e mostras são exatamente a vitrine de um movimento de mercantilização das formas, que dependem da circulação – internacional – para agregar valor. Daí a inevitável sensação, compartilhada por muitos que frequentam a mostra e por muitos que a evitam, de que temas constantemente se repetem, só que com nova roupagem; e também a sensação de que, a despeito do vanguardismo de muitos espetáculos internacionais, muitas das questões ali levantadas já eram discutidas por grupos brasileiros de menor prestígio há tempos. Não se trata então de que temporalidade parece antecipada, mas de qual delas tem valor agregado.

Vem deste último ponto a contundência com que a atriz, dramaturga e curadora da MITbr Grace Passô, durante a mesa Das Ações, que compôs o Encontro Perspectivas Anticoloniais desta edição da MITsp, alertou para a falsa novidade do atual assombro político que povoa a cena. Dada a emergência de lideranças de veio fascista que têm, dentre outras coisas, promovido a difamação e a perseguição de artistas no Brasil e no mundo, são frequentes os espetáculos que tentam lidar com o sentimento de assombro. Do mesmo modo, tem se tornado igualmente presente a inquietação em relação ao que significa o próprio fazer artístico nestes tempos. Afinal, como dialogar em cena ou como performar com um interlocutor que se pauta pela aniquilação do outro? Como dialogar com aquela parcela da população que parece ter abraçado de frente não um tempo passado, retrógrado, mas o fim dos tempos? Parece ser um sentimento generalizado na cena engajada o de que, para a existência da própria cena, será preciso temporalizá-la de modo radical para não sucumbir ao fim dos tempos.

No entanto, Grace Passô alerta que, se para a cena branca e ocidental este tempo do fim, este tempo de aniquilação parece novo (excetuando, é claro, aqueles que tiveram que lidar diretamente os traumas do pós-Segunda Guerra), para negros e indígenas ele já está dado desde o início de nossa colonização. Afinal, para uma população sempre marginalizada nos espaços decisórios e nos canais culturais de produção de imaginário, a relação com o outro sempre se deu sob o medo da violência e a angústia da destruição física e cultural. O novo, em verdade, não é tão novo, e a novidade só se torna critério de valor de acordo com quem se propõe a ser seu enunciador ou seu legitimador. A provocação feita pela dramaturga, urgente e necessária, é o que deve orientar não só uma nova perspectivação sobre o que esperar de uma mostra internacional, como também deve ajudar na reorientação de noções como novidade, modernidade e atraso. Em suma, descolonizar a cena implica não só olhar para as urgências, mas perguntar o tempo e a origem dessas urgências para forjar modernidades outras.

 

Fim do tempo ou tempo que se abre?

Muitos espetáculos desta mostra giraram em torno do problema do tempo. O tema, tomado assim genericamente, não é novo. Afinal, o século XX se abriu para as artes em geral repleto de figurações sobre o tempo – do fascínio futurista por sua aceleração às buscas romanescas de um tempo perdido na memória. O próprio teatro inaugura o século XX desestabilizando todas as relações convencionadas que a peça bem-feita ou o neoclassicismo aristotélico tinham acachapado dentro de uma tentativa de sincronização do tempo da representação com o tempo da ação representada. Pode-se dizer, talvez com algum exagero, que esta sincronização (a mesma realizada por toda empreitada burguesa que via o mundo a partir do relógio europeu) tomava o presente como temporalidade absoluta e reduzia o mecanismo cênico a uma máquina progressiva, feita de uma sucessão de presentes. Ao fim e ao cabo, um tempo positivo, pautado pela vontade heroica, em que tudo pode ser resolvido aqui e agora.

No entanto, diferentemente da fase heroica burguesa com seu presente positivo ou o mesmo do alto modernismo que pôs diferentes temporalidades em jogo na cena e fez o tempo voltar-se sobre si, o momento agora parece ser o de uma apoteose do fim. Postos a nu os grandes sistemas ideológicos e postas em cena lideranças políticas que cultivam o horror e ameaçam com a aniquilação, parece ressoar no teatro cada vez mais um tempo distópico. Todo o projeto iluminado – iluminista – do centro capitalista se vê agora diante do cansaço de um tempo outrora ofuscado próprias conquistas. O espetáculo Multidão (Crowd), dirigido pela franco-austríaca Gisèle Vienne, que abriu o festival, figura este fim por meio de um sentimento de esgotamento. Todo feito de uma precisa decupagem do movimento, que revela minuciosamente as partituras corporais dos atores-bailarinos, o espetáculo transforma os corpos jovens em sintetizadores apenas provisoriamente sintonizados (em verdade, a coletividade sincrônica parece sugerir uma profunda solidão). Todos ali poderiam acompanhar o som techno em velocidade frenética, mas o que há é uma desaceleração do conjunto, como se resistissem à temporalidade progressiva – e acelerada – da vida sob o capital. Coletivamente, parecem se suspender na temporalidade de um ritual, mas a época é outra: onde está a substância transcendente da vida atual? São corpos que dançam bem ao sabor da música, mas parecem cansados. É como se, ao fim e ao cabo, se perguntassem: de que vale toda a agitação? Seguir adiante? Para quê?

Multudão (Crowd) @Silvia Machado

No entanto, nem todos os espetáculos internacionais se reduziram a uma identificação cansada com a ausência de futuro. Farm Fatale, do francês Philippe Quesne, prefere operar em chave diversa, mas talvez por isso soe encantadoramente inocente: toma o próprio fim como começo, e é na terra destroçada pela produtividade capitalista que espantalhos inusitadamente simpáticos forjam a utopia. Já Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe, realizado pela artista francesa Phia Ménard, prefere transformar o fim em uma questão. Ali, o que é demolido é não só o Partenon – que acompanhamos da construção à demolição em cena – mas também todo o tempo da tradição ocidental, que se acumula sobre nossas costas. A civilização já é passado e rói. Enquanto tudo cai, a performer (uma espécie de “deusa grega futurista”) nos olha impassível e parece perguntar: aí estão os escombros de uma civilização… o que fazer deste fim? Caso o presente sejam ruínas, para onde seguir?

 

Maison Mere ©️Jean Luc Beaujault

Nessas peças parece haver a tensão constante de um tempo que deseja escapar à história – o (não) tempo do fim. Afinal, a história ocidental foi e é palco de um constante estado de exceção. Como resistir a esse tempo? Como forjar algo novo? Faz sentido pensar o futuro nos mesmos termos em que era pensado antigamente? Por culpa, pelo reconhecimento tardio de responsabilidade, pela tentativa de forjar um novo tipo de protagonismo ideológico ou mesmo por cansaço, este teatro vindo do outrora chamado Primeiro Mundo parece agora querer incorporar este tipo de questão. O projeto ocidental pondo suas próprias formas de temporalização em xeque.

No entanto, a radicalidade desta empreitada, como provocada no início deste texto, depende de algum modo da disposição da revisão de todo o projeto colonial que encapsula as formas hegemônicas do teatro ocidental. E ainda que ao longo dos últimos anos a Mostra tenha feito um esforço fundamental de investigar as diferentes formas de colonização e sugerir agendas pós ou anticoloniais, não basta ter a sensação de que o Ocidente está “limpando a sujeira” de outrora. Como alertou o líder indígena e escritor Ailton Krenak na mesa Do Tempo, dividida com o filósofo uspiano Paulo Arantes também no Encontro Perspectivas Anticoloniais da MITsp, a colonialidade – e sua temporalidade – é “aqui e agora”. Portanto, limpar a herança colonial não é tão simples, pois ela é constitutiva de nossa forma de ver e reproduzir o mundo.

É contra essa presença (e persistência) da colonialidade que a performance recifense Por Onde Andam os Porcos, dirigida por Kildery Iara, se coloca. O conjunto lida com a temporalidade da superprodução capitalista que se impõe mesmo sobre corpos periféricos. Assimila um tempo de aceleração e o cansaço dele oriundo (não à toa, o grupo parte do livro A Sociedade do Cansaço, de Byung Chul Han como fonte de pesquisa), que se faz sentir pela presença violenta das formas de opressão que insistem em homogeneizar os corpos.

Do mesmo modo, na performance ZOO, do grupo paulista Macaquinhos, (que já tem trajetória longeva na cena nacional e internacional e que, infelizmente, devido à pandemia, teve sua apresentação na Mostra cancelada), os corpos não mais têm a vitalidade de um presente cheio de possibilidades. Todos parecem tomados por uma espécie de cansaço. O grupo envolve o público em uma teia de cheiros e sons para criar um ambiente sensorial no qual os performers, mais do que apresentadores, são cansaço a ser sentido. A despeito do funk tocado incessantemente, todos parecem tomados pela ressaca de uma longa festa: a festa colonialista, com seu banquete de horrores. O gesto efêmero de “estar presente” (quase não há movimentos, e quando ele surge, parece logo evanescer) sugere uma problematização daquelas formas de relação com o Outro que, nos zoológicos humanos produzidos pelas potências imperialistas ao longo dos séculos XIX e XX, transformaram os povos das nações ocupadas em figuras exóticas, postas ali para contemplação e diversão. Aqui, a contemplação resulta em nada, como se a presença dos corpos fosse não só espelho distorcido, mas também resistência e resposta pela inação.

Zoo ©Francois Pisapia

A esta altura, já é possível perceber que atualidade e novidade já não se podem definir com marcadores que só fizeram e fazem reproduzir relações de colonialidade. A modernidade de nossa cena parece depender menos de acompanhar o compasso europeu e mais de se debruçar sobre a revisitação de uma urgência que não foi inventada agora, mas que sempre esteve no constante estado de exceção em que foi forjada a sociedade brasileira. Reinventar a ordem do tempo para descolonizar.