Texto escrito por Alvaro Machado sobre a mesa “E Com o Público, O Que Fazemos?”, do professor e ensaísta espanhol Óscar Cornago Bernal, no eixo Olhares Críticos da 4ª MITsp

Integrante do Centro de Ciências Humanas e Sociais do Conselho Superior de Investigações Científicas da Espanha (CSIC), de aparência bastante jovial em seus menos de 40 anos, o professor e ensaísta Óscar Cornago já contabiliza autoria ou participação em mais de vinte livros sobre teatro, em especial em torno de vanguardas dos anos 1960 e historização de gêneros como narrativa e drama. Também coordena editorialmente a publicação da obra completa do dramaturgo e teatrólogo espanhol Miguel Romero Esteo, surgido no quadro da pós-Segunda Guerra. Na América do Sul, trabalhou junto à Universidade de Buenos Aires (UBA) e à Universidade Estadual de Santa Catarina (Udesc).

Integrando o eixo “Olhares Críticos” da 4ª MITsp, Cornago ofereceu, na quarta-feira 15 de março, no Itaú Cultural, a conferência “E com o público, o que fazemos? – Teatralidade, público e democracia”, que ecoa ideias de seus últimos livros publicados, entre eles Ensayos de Teoria Escénica (Abadia Editores, 2015).

Em 21 de março, o pesquisador irá participar da mesa “Cena Contemporânea: Panoramas Críticos”, balanço crítico da atual edição da mostra, junto aos professores Edélcio Mostaço (Udesc), Sílvia Fernandes (USP) e Christine Greiner (PUC-SP).

Na mesa “E com o público…”, Cornago surpreendeu com proposta metateatral de reflexão sobre a presença de cada ouvinte no auditório do segundo subsolo do Itaú Cultural, na avenida Paulista. Entre outros elementos não-ortodoxos para uma palestra, iniciou por autoanálise de sua expectativa e de seu estado de ânimo naquele momento, e, no ponto central de sua charla de uma hora e meia, chegou a solicitar a todos três minutos de completo silêncio. Também interrompeu fluxo de ideias para ilustrá-las com a audição, sem particularizar análises, da canção La Leyenda del Tiempo (1979), de Camarón de la Isla (1950-1992), sobre poema de Federico García Lorca que sublinha o caráter de insubmissão do tempo à vontade humana. Os versos são extraídos da obra teatral em três atos Así Que Pasen Cinco Años, de 1931, na qual o poeta andaluz antecipava de maneira quase sobrenatural seu assassinato pelas milícias fascistas, em 1936.

O tempo reservado à presença de um indivíduo em recinto teatral e o caráter eminentemente comunitário desse “estar presente” constituíram, de fato, o ponto central da exposição do espanhol. A participação ativa das plateias na instituição do teatro burguês ao longo dos séculos XVIII e XIX, em grandes salas como o Teatro Apolo de Paris – de célebres polêmicas verbais e físicas no meio de suas plateias – foi comparada pelo ensaísta aos fatos registrados na cerimônia de abertura da 4ª MIT, em 15 de março, quando veementes manifestações da plateia que lotava o Theatro Municipal de São Paulo foram dirigidas, por mais de vinte minutos, aos representantes das esferas municipal, estadual e federal de poder que se apresentaram no palco.

Ao longo de sua fala, Cornago buscou dar contornos palpáveis a seu tema, seja por acessórios característicos do palestrante, seja por meio de problematizações sobre o tempo reservado à própria fala e alusões à estrutura do discurso enquanto era enunciado. Na mesa de serviço, ao lado da garrafa de água mineral, um pequeno despertador cor-de-rosa com duas ameaçadoras campainhas presidia o ambiente. A tensão gerada pela pontuação da passagem do tempo no próprio correr da fala condensou-se, afinal na pausa de três minutos. Esta, no entanto, não ligou-se a qualquer instância da exposição teórica. O caráter performático do palestrante, engajado em uma espécie de “corrida contra o tempo” – na aparente tentativa de expor uma teoria completa, filosófica e sociológica, em apenas 90 minutos –, deixou atônitos os espectadores mais atentos, cumprindo, talvez, o objetivo ulterior do palestrante. A par de sua irreverência, o título “O que fazer com o público?” tornou-se, curiosamente, literal.

Cornago apontou o caráter de “normalidade” e “ordenação” a constituir uma platéia teatral – reafirmando, de outro lado, sua origem nas lutas revolucionárias europeias do século XVIII –, para notar, então, que “nada é normal nessa constituição”, pois “está subentendido e permitido que fatos extraordinários aconteçam no espaço destinado ao público, sendo que, ao longo de um minuto, até mesmo o assassinato de uma pessoa pode ocorrer, e posto que ontem, por exemplo, na ocasião da cerimônia de abertura da MIT,  vimos  acontecer, de fato, coisas muito especiais”. De outro lado, o ponto de partida da constituição do espaço reservado ao público, com sua aparência de “normalidade” e soberania comunitária, decorreria, segundo o palestrante, do projeto iluminista do século XVIII, que instaurou o espaço público, “de maneira semelhante aos processos verificados nos séculos XX e XXI com as ditaduras oficiais que sofrem processo chamado normalização ao se transformarem em democracias oficiais, mas que guardam procedimentos das antigas ditaduras, que embora não sejam tão visíveis, continuam operantes”.

Assim, segundo o palestrante, espaços públicos podem parecer ‘tolerantes’, ‘abertos’, ‘de encontro’, e ligados aos ideais que se encontram na base da democracia, na qual todos podem se expressar e defender ideias. “Na realidade sabemos que não funciona assim e que se trata apenas de formas ideais de organização, de algo ideal e que no entanto exclui, sustentando-se em um princípio de violência. Estamos aqui reunidos hoje na condição de público e isso de alguma maneira exclui quem não pode estar aqui”, assinalou.

Em seguida, o intelectual arrematou o raciocínio com premissa polêmica que tem figurado em sua obra ensaística dos últimos anos: “Em geral temos, dentro de um espaço público, uma determinada classe social e econômica, mas é preciso lembrar que há também muitas outras classes à margem desse público. O espaço público teatral tem que ver, pois, com a ideia de assembleia, e, portanto, de democracia, mas ele se constrói, na verdade, sobre um espaço de anormalidade, para utilizar novamente o termo exposto aqui antes, desta vez porém para apontar as suas possibilidades”, pontuou Cornago, encerrando a primeira meia hora de sua exposição, fundada em intersecção dos conceitos de tempo e espaço.