Por Álvaro Machado

A terceira mesa do seminário Dimensões públicas da crise e formas de resistência, na 4ª  edição da MITsp, no Itaú Cultural, na última sexta-feira (17), com mediação do professor e crítico carioca Patrick Pessoa, colocou frente a frente informações de ponta sobre macro e micropolíticas, respectivamente a cargo de Rosane Borges –professora do Centro de Estudos Latino-Americanos sobre Cultura e Comunicação da Universidade de São Paulo e integrante da Cojira-SP (Comissão de Jornalistas pela Igualdade Racial) – e Suely Rolnik, psicoterapeuta, crítica cultural, professora e integrante do Núcleo de Estudos da Subjetividade da PUC-SP.

Em sua fala de inúmeros momentos de contundência, além de desenho estrutural sobre as questões do negro e da mulher no Brasil, Rosane sublinhou problemas culturais e psicológicos no interior da questão racial, que se conectaram diretamente às questões abordadas pela segunda expositora da tarde.

Borges iniciou por panorama macropolítico e avançou paulatinamente a questões micropolíticas, como se lê na transcrição resumida de sua fala, oferecida a seguir.

Disse a professora: “No conjunto das nações, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) brasileiro tem oscilado entre o 79º  e o 82º lugar. Porém, se são considerados apenas os indicadores da população branca, isso melhora, e muito, ficando-se entre 38º  e 42º lugar. Pois para parte da população brasileira a crise não existe e o país vai muito bem, obrigado, porém apenas para essa parcela, que tem educação fundamental de qualidade, saúde e moradia de qualidade.

Quando consideramos a população negra, ou não branca, o nosso IDH passa à 114ª posição. Ou seja, isso constitui um fundamento em primeira instância racial, que revela claramente que o Brasil é acentuadamente desigual.

A discussão da pobreza costuma ser tratada dessa maneira indistinta no Brasil, colocando-se um véu sobre o problema que alimenta a questão da desigualdade. O racismo dinamiza a questão de classes no país, bem como o problema de gênero. Se considerarmos, no IDH, a questão dos gêneros, das mulheres etc., essa tragédia numeral se agrava.

Assim, para se pensar uma reconfiguração das políticas sociais públicas no Brasil, é preciso levar em conta prioritariamente esses sujeitos. É impossível pensar a política de transformações no Brasil sem pensar o racismo. A ativista negra norte-americana Angela Davis afirma, acertadamente, que ‘raça e gênero informam classe’, pois é preciso considerar essas intersecções de explorações, que incidem diretamente na questão macropolítica.

Sobre o Brasil, basta lembrarmos a vergonha ainda recente que o presidente Fernando Henrique Cardoso passou, quando foi obrigado a assumir que o estado brasileiro era racista, o que ninguém ousara antes porque havia, aqui, o mito da integração racial. Somos um país miscigenado, e, para os poderes, isso seria um traço inequívoco de ausência de racismo. Esse mito da ‘democracia racial’ foi muito alimentado depois de Casa Grande e Senzala, democracia que, aliás, a obra de Gilberto Freyre não consegue demonstrar.

Do ponto de vista da Cultura, nós seríamos um povo assimilacionista. Ou seja, a elite branca come feijoada escutando Zeca Pagodinho à beira da piscina e as famílias negras pobres nas franjas das periferias de cidades como São Paulo comem macarronada italiana aos domingos. Dessa maneira, estaria ‘tudo certo’. Porém, do ponto de vista estrutural, esses dois mundos não se comunicam de fato. A nossa estrutura é absolutamente apartada. De tal maneira apartada que os lugares predefinidos para negros encontram-se a tal ponto naturalizados que nenhum de nós costuma assustar-se com a presença majoritária de corpos negros, masculinos e femininos, nos estratos mais subalternos do Brasil.

Do ponto de vista da transformação social, do ponto de vista da mulher negra, por exemplo, vem-se reafirmando a necessidade de um outro pacto civilizatório – e isso não só no Brasil, mas no mundo –, estamos dizendo que temos, sim, um projeto para que este país supere realmente a desigualdade, pois é um povo que tem muita inteligência, apesar de ter sido escravizado, é um povo que soube sobreviver à tragédia da escravidão moderna. A escravidão transatlântica, com muitos milhares de africanos transportados a outros continentes, é considerada a pior tragédia da era moderna. E se essas mulheres dizem isso, não por presunção, mas por experimentar na carne o que temos de mais radical em termos de desigualdade, elas devem ser ouvidas.

Na atualidade, nas redes sociais etc., muitos reagem a essa realidade, classificando de “mi-mi-mi” as narrativas de quem fala de sua exclusão e de seus traumas, mas é preciso, sim, falar, e ainda muito mais.

A universidade mudou bastante, nos últimos vinte anos, com a política de inclusão de quotas raciais. Milhares de famílias pobres, em maioria negras, foram beneficiadas pelos programas públicos de transferência de recursos como o Bolsa Família. Porém, as mulheres negras não são vistas como sujeitas para pensar política no Brasil, nós somos vistas apenas como destinatárias de políticas públicas.

Em seu livro A Partilha do Sensível, o filósofo francês Jacques Rancière esboça uma concepção radical da política, da qual gosto bastante. A política seria, para ele, algo que se dá por meio do desentendimento, e isso supõe duas pessoas diferentes a partilhar o mesmo espaço, supõe a condição de um ser falante a argumentar no mesmo espaço de outro ser falante. Ele nos recorda, então, que os destinos da coletividade no estado grego antigo, dito democrático, ou seja, que o comum era decidido por homens da classe aristocrática, sem qualquer acesso de escravos, artesãos e mulheres às esferas de decisão.

Essa concepção de política de Rancière poderia ser transportada, grosso modo, ao Brasil atual, pois o que temos aqui? Ainda que se considere momentos muitos raros de emancipação e transformação mínima da mulher e do negro, eles não partilham, a rigor, do comum. Nosso imaginário foi habituado a não enxergar mulheres e negros nos espaços de decisão, e eles até hoje não ocuparam cargos como de Ministro da Economia, por exemplo. Será que é porque somos incompetentes? E por que isso não chama nossa atenção e não nos escandaliza? Porque nosso imaginário foi habituado a isso. O ‘normal’ aqui é não termos pessoas negras nos espaços de decisão.

E quando pensamos que o Estado se configura através de três vetores mais importantes – Economia, Direito e Política –, e que grupos historicamente discriminados estão ausentes dessas três esferas, isso significa dizer que eles não partilham e não decidem os destinos do indivíduo, da coletividade. Chegamos, assim, à conclusão de que as populações negras, indígenas, femininas e trans encontram-se excluídas dessa partilha do comum.

No lugar de fala de muitos brancos, hoje no Brasil, há o discurso de que, por conta de toda uma ‘censura e patrulhamento dos grupos negros’, não há como eles falarem sem constrangimentos sobre a questão racial. Oras, todo branco brasileiro, se estiver minimante atento à dinâmica social do país, tem a obrigação de informar-se e de tomar o racismo como questão prioritária e cotidiana. Porque o racismo não apenas torna pobre mais da metade da população brasileira, ele nos piora enquanto nação propriamente, e nós somos menos nação  simplesmente porque continuamos a alimentar o racismo. As mortes, aos borbotões, de jovens negros marginalizados (na proporção atual de um morto a cada 23 minutos) não comovem as pessoas no Brasil porque não há o reconhecimento de que esses corpos negros dizem respeito à humanidade de todos.

Vou citar, para ilustrar esse problema, um filme que me emociona muito – Tempo de Matar [A Time To Kill, dir. Joel Schumacher, 1996] –, com o ator Samuel L. Jackson. Nele há um exemplo para refletirmos sobre duas questões, na esteira do pensamento de Hannah Arendt, para se pensar culpa e  responsabilidade. Muitos dizem, no Brasil: ‘Eu sou contra as quotas raciais porque não tenho culpa de que meu avô foi escravocrata, de que meus tataravós foram senhores de engenho, portanto sou contra as quotas porque elas ferem o princípio do mérito’. Arendt afirma que ‘culpa ninguém tem’. A gente não pode culpar uma pessoa branca pelo racismo se ela se declara antirracista, obviamente, mas qualquer pessoa branca e qualquer homem deve assumir a responsabilidade de enfrentar o sexismo, o racismo e a transfobia. Arendt nos ensina sobre a diferença entre culpa e responsabilidade, e isso nos leva a uma outra discussão – muito bem trabalhada por Suely Rolnik –, a uma  questão na esfera do micropolítico, ou seja, à ideia de reconhecimento. Para ilustrá-la, volto ao Tempo de Matar. No filme, passado no estado racista do Alabama, no sul dos Estados Unidos, a filha de dez anos do [personagem interpretado por] Samuel L. Jackson é barbaramente estuprada (desculpem o pleonasmo), após se ultrapassar todos os limites possíveis de respeito, após agressões físicas etc. Samuel trucida um dos agressores e é preso. No Tribunal de Justiça, seu advogado de defesa, um branco saído do Norte esclarecido, é obrigado a usar o seguinte argumento frente ao júri: ‘Fechem os olhos e imaginem o sofrimento de uma criança sendo estuprada, a calcinha sendo arrebentada etc. Agora, imaginem se fosse uma criança branca!”. Pois se ele dissesse, simplesmente, ‘Imaginem o que essa criança negra sofreu!’, os jurados brancos não dimensionariam a fatalidade, porque não conseguem ver, no corpo negro, a sua humanidade.

E isso tem que ver diretamente conosco, com o Brasil, porque também não nos comovemos quando tomamos conhecimento de que oito entre dez homens assassinados são negros. E neste ponto é preciso lembrar algo ainda mais absurdo, o fato de que dentre esses oito negros assassinados, seis não apresentam antecedentes policiais”, disse a jornalista.

Sua fala prosseguiu por atualizações de informações presentes em livros que escreveu ou organizou, como Esboços de um tempo presente (2016), Espelho infiel: o negro no jornalismo brasileiro (2004) e Mídia e racismo (2012).

A palavra foi dada, então, à professora Suely Rolnik, que privilegiou em sua fala estudos desenvolvidos nos últimos anos sobre a questão das micropolíticas. Suas teorias informam-se, em grande medida, na filosofia dos franceses Gilles Deleuze e Félix Guattari, autores de O Anti-Édipo, entre outros volumes escritos em parceria. Com Guattari, Rolnik assinou o volume Micropolíticas – Cartografias do Desejo (Ed. Vozes, 1986).

Suely desenvolveu aspectos de um conceito que propõe retorno a potenciais ancestrais, próprios ao homem pré-capitalista industrial, e a uma sensibilidade criativa que superaria com muitas vantagens as contradições inerentes ao “inconsciente colonial capitalístico”. Segundo ela, essa cultura antropo-falo-ego-logo-cêntrica dominante desde o final do Medievo fundamenta, inevitavelmente, a psicologia do homem contemporâneo e o impede de pensar micropoliticamente.

A filósofa começou sua exposição com declaração de solidariedade irrestrita a Rosane Borges e à sua dupla condição de mulher e negra. Para Rolnik, que lembrou ser de ascendência judaica direta, a discriminação antissemita de muitos séculos e a perseguição que levou milhões de judeus a campos de trabalho e câmaras de gás, na Segunda Guerra Mundial, não se compara, em magnitude, à tragédia da escravidão negra mencionada antes por sua companheira de mesa. Ainda mais porque os judeus teriam sido reposicionados na sociedade global de maneira confortável desde então, enquanto o povo negro estaria conhecendo, ainda nos dias atuais, recrudescimentos periódicos de violência contra sua condição, em todos os países gerenciados por brancos, no mundo inteiro.

Rolnik afirmou, então, que a memória ativa de nosso corpo liga-se diretamente a apenas trinta outros corpos de seus ancestrais, e que portanto, essa memória corporal teria acesso a dados de DNA apenas até o início da era capitalista industrial, no século XVI. Essas informações estariam inscritas num dos lados de uma projetada Fita de Moebius, enquanto no lado anverso se inscreveria a memória mais ancestral, à qual teríamos acesso ao “caminhar pela fita” com incisões, ou seja, com recortes de tesoura no interior desse objeto sem início e sem fim, que modificariam a sua forma e estenderiam-na espacialmente de maneira quase infinita, trazendo à tona ou tornando acessíveis sabedorias e sensibilidades ainda não formatadas pela “cafetinagem capitalista”, ou seja, cabedais da Idade Média e de antes. Sua teoria é inspirada na experiência Caminhando, da artista mineira Lygia Clark (1920-1988), que em dado momento de sua trajetória abandonou a confecção de esculturas etc. para convidar seu público a  processos físicos e mentais ativos, com proposta de reconexão entre ato e arte, ou entre vida e arte.

“Porém, confesso que o trauma do machismo no meu próprio corpo, eu só consegui sentir de fato recentemente, quanto tomei conhecimento dos confrontos promovidos pelos negros em movimento na atualidade, em especial na ocupações das escolas públicas”, testemunhou Rolnik.