Por Alvaro Machado

Para iniciar a quarta e última mesa de debates do seminário Dimensões Públicas da Crise e Formas de Resistência, na 4ª edição da MITsp, acontecida na Casa das Rosas, no último domingo (19),

o mediador Patrick Pessoa leu um texto formulado à maneira de “provocação” pelos curadores do eixo crítico do evento, Luciana Romagnoli e Kil Abreu.

Com o mote do título da mesa, “A rua como palco de protestos: estratégias estético-políticas de mobilização pública”, os curadores perguntaram aos participantes: “A partir das ocupações na avenida Paulista e de tantas manifestações pelo Brasil afora, convocadas por diversos movimentos sociais e frentes políticas, propomos debate sobre as formas de apropriação do espaço público, refletindo-se sobre as estratégias performativas poéticas e discursivas empregadas nas mobilizações sociais, especialmente desde junho de 2013 no Brasil. De que maneiras o espaço público é território de disputa simbólica no país, e como fazer uso de seu potencial de resistência e transformação social?”.

Para responder estiveram presentes Nina Caetano, pesquisadora da cena contemporânea, performer e dramaturga, doutora em Artes Cênicas pela ECA-USP e professora-adjunta na Universidade de Ouro Preto (UFOP); Pablo Ortellado, professor do curso de Gestão de Políticas Públicas da Escola de Artes, Ciências e Humanidades da USP, autor de diversos livros, entre eles Por Que Gritamos Golpe?, que mapeia manifestações de rua desde 2013; e Marcelo Freixo, professor e político, filiado ao Partido Socialismo e Liberdade (PSOL), deputado estadual pelo Rio de Janeiro, o mais votado no Brasil em 2014, e que concorreu à prefeitura do Rio em 2012 e 2016, quando obteve mais de quarenta por cento dos votos do segundo turno.

Com a palavra, Pablo Ortellado teceu reflexão sobre a natureza dos chamados novos movimentos de protesto. “Eles são mais múltiplos e colocam a dimensão estética com sensibilidade, há múltiplas formas de autoexpressão, em oposição aos movimentos de massa tradicionais dos sindicatos e partidos políticos. Houve toda uma mudança de paradigma”.

Entre as diferenças entre essas duas formas de se manifestar no espaço público, Ortellado lembrou, de um lado, os eventos contra o impeachment ocorridos em 2015, que contaram com a presença de Lula, bandeiras de partidos e faixas de sindicatos de um lado, e de outro lado as manifestações de junho de 2013, com profusão de cartazes e cartazetes, vontade de autoexpressão, fantasias e performances. “Essa última forma emergiu com toda a força em 2013, porém pode-se dizer que é muito anterior, remontando, por exemplo, a 1967, ao caso fundante constituído pela Marcha Contra a Guerra do Vietnam, em Washington, em outubro de 1967, que aliás está prestes a completar cinquenta anos”, lembrou Pablo.

“Aquele movimento, gerado por hippies e beatniks, reuniu cem mil em frente ao Pentágono. Parte deles deram-se as mãos para emitir o mantra OM, com o propósito de fazer o edifício governamental levitar”, lembrou.

“A contracultura é sempre dissociada do movimento político, mas eles se juntam, finalmente, no movimento punk, nos anos 1980; veremos, então, uma série de conflitos internos nos protestos de rua, por exemplo num Primeiro de Maio no Brasil que registrou briga entre punks e sindicalistas, foi em 1988”.

“O lado mais tradicional acusa os novos de mobilizar forças sociais intensas para então dispersá-las e pergunta: ´Por que não canalizar tais forças para um universo político?’ Já os novos movimentos perguntam: ‘Por que subordinar tanta energia ao Estado e matar a multiplicidade, atrelando as pessoas a projetos costurados em gabinetes?’. No entanto, esse é um debate que já se dá há cinquenta anos, com os novos e os velhos movimentos convivendo, de um jeito ou de outro. Por outro lado, as críticas de ambos os segmentos são pertinentes e está na hora, depois de 50 anos, de fazer uma reflexão sobre os limites de ambas as formas. A necessidade disso nunca foi tão grande, estando-se acuados, como estamos, em um ambiente tão hostil e negativo. Esse desafio não é só nosso, é um cenário atual dos EUA, da Argentina, da Colômbia, do Chile…”.

“Precisa-se encontrar uma forma que combine as virtudes das duas formas de expressão, que seja horizontal e participativa, que seja expressiva, mas, ao mesmo tempo, que tenha estratégia e leve as reivindicações até algum termo”.

“O ano de 2103 é muito controverso por causa da crise política desencadeada, e se diz que o Partido dos Trabalhadores abriu, então, a Caixa de Pandora que levou ao golpe. Mas esse junho trouxe uma novidade sob a perspectiva internacional, em contraste por exemplo com o movimento da Primavera Árabe, que embora tão espetacular, redundou em retrocesso político, no Egito principalmente. Já o junho de 2013 gerou redução das tarifas de transportes em todas as grandes capitais do Brasil, e o montante que os governos abriram mão é igual a meio por cento do PIB brasileiro, ou seja, o mesmo valor de todo o Bolsa Família. Foi, portanto, uma vitória social na história social brasileira”, concluiu Pablo Ortellado.

Nina Caetano leu manifesto poético-político de sua autoria sobre a posição da mulher na sociedade atual. O texto reage à tragédia brasileira de multiplicação de assassinatos violentos de mulheres no últimos anos. Caetano também portava um lençol, no qual imprimira em vermelho 365 cruzes vermelhas e nomes de vítimas de feminicídio, além de breves relatos das circunstâncias dessas mortes, bem como o nome de maridos e amantes assassinos. Em um segundo texto, analisou, com bases teóricas acadêmicas, o valor da performance contra o machismo na sociedade brasileira, de consequências nefastas.

“Dos 365 nomes de mulheres que habitam cada lençol em minha ação performática, muitas denunciaram as violências que sofreram e recorreram à Justiça buscando proteção, muitas denunciaram as violências sofridas, outras se calaram antes ou foram silenciadas, suas vozes desinvestidas de valor e de poder. Num país onde se mata, em média, treze mulheres por dia, essa não pode mais ser tratada como questão do âmbito privado, ou doméstico, mas como problema político-social”, continuou Caetano.

“Eu me pergunto, com a pesquisadora cubana Ileana Diéguez: ‘Qual a eficácia da ação performática na cena contemporânea?’ O ativismo aliado à performatividade pode alargar as fronteiras da atuação política. Também para a professora Eleonora Fabião, a força da performance é turbinar a relação do cidadão com a polis, do agente histórico com seu contexto, a relação do vivente com o tempo, do espaço com o corpo, e do outro consigo, essa é a potência da performance, desabituar, desmecanizar, escovar a contrapelo, pois trata-se de buscar maneiras alternativas de lidar com o estabelecido”, elencou. “Disseminar dissonâncias é, para mim, a tarefa de toda arte que se considera política”. Nina destacou, ainda, que apesar de as ligações entre performance e ativismo remontarem às décadas de 1950 e 1960, parece haver atualmente o estreitamento desses laços. “Se por um lado podemos notar o ressurgimento da politização na arte, através de práticas carnavalescas, lúdicas e corporais, por outro é bastante perceptível o desenvolvimento de atitudes estetizadoras nas práticas políticas de diversos movimentos sociais, do movimento negro ao feminismo”.

O deputado Marcelo Freixo tomou a palavra para notar que, de acordo com as falas da mesa, o conflito ente o novo e o velho não é algo novo, mas que se pode afirmar, todavia, que um impulsiona o outro. “Essas forças não são excludentes, e é muito importante que os partidos políticos tenham a capacidade e a sabedoria de fazer essas leituras, de entender que talvez não caiba mais exclusivamente a eles e aos sindicatos a missão de conduzir a luta política”.

“Os sindicatos jamais deixarão de ter importância, assim como os partidos, mas outras formas de luta surgem a todo momento. O ano de 2013 tem enorme importância nesse processo. Fui candidato à prefeitura em 2012 e meu vice era o cantor e pensador Marcelo Yuka, um revolucionário da arte. Com antena de poeta, ele já falava, em dezembro de 2012, numa filmagem, que havia alguma coisa diferente no ar, que algo estava prestes a acontecer. E esse 2013 que a gente ainda não entende, porque pensa com cabeça antiga, gerou uma série de crises, e a primeira foi a do sistema coletivo de transportes. Efetivamente, não foi um movimento conservador, embora dentre um milhão de pessoas na rua possa haver de tudo. Mas a pauta não era reacionária ou conservadora, trazendo a questão da violência policial, por exemplo, para o centro da pauta”.

“Ali a reforma agrária não apareceu e o MST teve presença muito simbólica. O eixo era urbano, pois a crise de representatividade política é acompanhada de uma séria crise de administração das cidades, em questões como a mobilidade urbana e o direito à cidade. As portas abertas em 2013 estão abertas até hoje. Vladimir Safatle afirmou, em um artigo, que 2013  foi a morte de uma política, com o surgimento de uma outra. Essas novas formas ainda são difíceis de identificar. Por exemplo, no Rio de Janeiro, há uma semana, nas passeatas contra a Reforma da Previdência, havia jovens protestando em formato de bloco de Carnaval, ao lado de sindicatos com suas bandeiras, e foi fascinante ver isso acontecer, pode ser o começo de um encontro na rua, no espaço da rua, que é muito vivo. Essa rua é um espaço instituído a partir de uma crise gigantesca de representatividade, tanto do modelo político quanto do modelo de cidade, e precisamos juntar essa duas pontas”, disse.

“A república antiga morre e é sepultada em 2013. A força principal que derrubou Cunha foi a do movimento de mulheres nas ruas, ele foi praticamente destituído por elas, o que é algo muito interessante pensar. Não foram as forças contrárias ao deputado no Congresso, mas as mulheres que saíram às ruas. Há uma nova linguagem e um tempo de internet, uma velocidade de organização que é outra, o que traz muitos problemas, mas também nos traz novos caminhos. Os movimentos de mulheres e da juventude nascem depois de 2013, mas há formas de organização deles, formas próprias que são diferentes, sim. De que maneira isso nos traz o debate da democracia?, essa é uma grande questão, que deve ser cara a nós. Há um livro de Jacques Rancière, Ódio à Democracia, que afirma que o maior  desafio da democracia é a própria democracia, porque esse não é lugar de chegada, ele é um meio, um caminho, e quanto mais democracia você conquista, maior será teu desejo de representatividade. Esse é um apetite um tanto insaciável, que nós experimentamos diretamente na vivência das ruas. As pautas vão se renovando continuamente e não estão mais sob o controle de um partido político ou de um sindicato, seja ele qual for. De alguma maneira, isso é fascinante”.

“Em meio a tudo isso, você tem o golpe, que é evidentemente uma ruptura e marca outro processo. Havia uma série de contradições anteriores ao golpe e que, no entanto, não geravam movimentos. O golpe traz uma nova pauta, enquanto outras são esquecidas, e essa nova pauta vai dialogar com esses movimentos que não necessariamente vão se resolver num novo governo, seja ele qual for. Não podemos adivinhar o que acontecerá em 2018, mas com certeza não encerrará 2013, não encerrará essas novas formas”.

“Como elemento provocativo, afirmo que a democracia deve ser estreitamente associada à conquista de direitos, e que nela todas as formas de reivindicações precisam conviver, as das novas juventudes, dos movimentos de mulheres, das novas formas de organização sindical, tudo precisa se encontrar no espaço de debate da cultura de direitos, nas ruas que serão múltiplas. Para mim, o grande desafio na organização da esquerda é entender o quanto qualquer nova concepção de luta de classes tem de estar calcada na ideia dos direitos humanos. Essa não é uma afirmação tão simples, pois acabei de sair de uma candidatura à prefeitura do Rio na qual o maior ataque dirigido a mim foi provocado pela defesa que fiz dos direitos humanos. Essa passou a ser uma pauta negativa, para a gente ver o nível de doença da democracia brasileira hoje. Enfim, esse é um debate que a esquerda precisa enfrentar, isto é, a cultura de direitos precisa ser a essência da busca de um novo modelo de democracia e de representatividade”, terminou Freixo.

O mediador do debate, o professor de filosofia Patrick Pessoa,  assumiu então papel de “provocador”, conforme se definiu, para indagar os palestrantes sobre a efetividade de resultados das novas ações no campo da micropolítica. “Quais seriam os resultados práticos da ação política com as novas expressividades vistas nas ruas, e uma vez que a política se mede por resultados, podemos chamar de resultado uma vitória como aquela da redução da passagem em 2013? Porque essa conquista foi rapidamente revertida [com aumentos sucessivos de passagens etc.], como vocês mesmos citaram. Então qual seria a natureza dessa vitória? Pelo tamanho da reação conservadora, é muito urgente pensar a conjugação da politização da estética com a necessidade de resultados. A simples cultura das ruas e o reencantamento com a política visto em 2013 já seriam uma vitória e um resultado, contando-se com o tempo a nosso favor? Temos tempo para esperar?”, questionou. “Em segundo lugar”, continuou Pessoa, “qual o sentido de 2013, ele representou realmente algo novo, já que recuperou 1967, como disse Ortellado?”.

Pablo Ortellado começou a responder: “Tomamos 1967  como um marco, mas as coisas evoluíram. Os movimentos de contracultura mais recentes nascem de experiências concretas, com decisões tomadas de maneira coletiva, e isso é democracia e política, não a palhaçada do Congresso atual”.

Nina Caetano concordou parcialmente com o mediador sobre a questão da eficácia da ação política. “Esse de fato é o grande nó, isso tem sido bastante desesperador para nós, pois muitas das conquistas feministas retrocederam. Mas continuamos na rua, agindo, e pensando na micropolítica, e recordemos o que aconteceu em Belo Horizonte agora. O movimento A Cidade que Queremos reuniu várias políticas sociais de base, o feminismo, o movimento negro etc., e então criou-se essa plataforma, que foi abraçada pelo PSOL. Com ele, elegemos algumas vereadoras que tinham um trabalho diário micro nas ruas, junto a comunidades de base. Elas têm tido essa conversa pequena com os movimentos, diálogo corpo-a-corpo com secundaristas, mulheres etc. Então algo está acontecendo em nível de eficácia, não no grande, que nos afeta a todos, como a Reforma da Previdência etc., onde não temos essa eficácia. Mas com articulação nós chegamos lá, como já chegamos à Câmara de BH, então o caminho é do menor ao maior. Na comunidade ouropretana discutimos a violência diária às mulheres em reuniões com elas próprias, que já começaram a pensar formas de escapar desses ciclos, e para mim trata-se de uma eficácia política, que talvez não apareça tão imediatamente, que talvez não seja tão visível aos olhos de todos”.

Também em resposta à provocação, Marcelo afirmou que “a grande utopia precisa dialogar com as conquistas possíveis, construídas de maneira mais horizontal, como nas ações do Movimento do Sem Teto que recentemente ocuparam a Avenida Paulista e que afinal saíram vitoriosas. Essa conquista logo vai dialogar com outras forças políticas. A vitória eleitoral é fundamental, derrotar o golpe etc., mas eleger duas vereadoras em BH, uma delas a mais votada, uma mulher negra que vem do movimento popular, isso também é muito importante. A maior manifestação Fora Temer que tivemos até hoje no Brasil foi no Carnaval deste ano, portanto não foi algo programado por força política, isso foi espontâneo. Todos os blocos, de Norte a Sul, gritaram Fora Temer, e concluímos, assim, que a festa não é nossa inimiga, ‘a festa é uma fresta’, e acho que tudo isso sobreviverá ao fim do Carnaval, enquanto, de outro lado, as formas de representação social dialogam cada vez mais com a estética do Carnaval”.

Nina Caetano completou: “Em BH houve projeto governamental de forte privatização dos espaços públicos, até mesmo com a instituição de cercas físicas, com alugueis, etc. Então reagimos com ocupações desse espaço público, começando com a criação do que chamamos a Praia da Estação [a Praça da Estação], um movimento carnavalizante. E ele gerou o Carnaval de BH, que não existia, com forte conteúdo político. E esse Carnaval gerou, em certo sentido, a nova ocupação da Câmara e o movimento A Cidade que Queremos, com duas vereadoras eleitas, que discutem propostas diretamente com a população. Com a retomada do espaço público, a vereadora mais votada foi na contramão do grande marketing político. Considero isso eficácia política”.

Patrick Pessoa refutou novamente os palestrantes: “Mencionei a questão do tempo porque o PSOL fez seis vereadores no Rio e vocês fizeram duas em Belo Horizonte, mas a gente sabe que a configuração nas câmaras é amplamente desfavorável à aprovação de frentes progressistas, e então isso parece ser uma estratégia de longo prazo, o que encerra, para mim, uma questão de eficácia”.

A resposta da ativista e performer Nina Caetano foi sintética: “Acho que é isso mesmo, temos de trabalhar as formas políticas no longo prazo, porque se for num prazo mais curto seria a Revolução”.