Texto sobre o espetáculo Revolução em Pixels, escrito por Ivana Moura (blog Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena – Plataforma de Crítica)

Filmar, mesmo que as imagens sejam toscas, é um ato político extremamente perigoso. É  ou foi, no início da guerra civil na Síria, quando as milícias eliminaram os manifestantes armados apenas de celulares (atualmente todos os lados carregam seus arsenais bélicos). As gravações que chegaram às redes sociais fixaram a própria morte de militantes. Essa memória digital é matéria do espetáculo Revolução em Pixels (2012), trabalho do ator, dramaturgo e artista visual libanês Rabih Mroué, que trafega nas fronteiras do teatro, da performance e do vídeo.

Na encenação em formato de palestra-performance, Mroué investiga o ato de documentar, decompõe imagens e, com isso, revela camadas de contradições, cria narrativas que explicitam um mundo terrível e indaga os alcances entre documentário e ficção.

As gravações mostram atiradores disparando em qualquer pessoa com celulares na mão. Naquele cenário, os jornalistas estrangeiros estavam proibidos de registrar o regime de Assad. E o governo não media esforços em apagar os resíduos de uma possível barbárie. Os documentos digitais (de baixa qualidade) dos manifestantes expõem as entranhas do conflito e propõem leituras difíceis de estar no mundo.

Na peça Revolução em Pixels, Rabih Mroué coletou as imagens do YouTube, ampliou e dissecou para criar uma narrativa sobre essa complexidade. Amplificou tanto a identidade do atirador que a tornou abstrata. E articula esse material numa configuração de resistência.

Rabih Mroué confronta a produção dos vídeos dos protestos sírios com o manifesto cinematográfico dinamarquês Dogma 95. Expõe os conselhos dos ativistas do modo como registrar uma manifestação com mais segurança. Deduziu que as instruções se ligavam ao manifesto cinematográfico criado por diretores dinamarqueses Lars Von Trier e Thomas Vinterberg.

Mroué identificou semelhança entre a busca dos cineastas por um cinema de arte, independente das vinculações do mainstream, e os protestos dos ativistas que também buscavam uma libertação de um regime. Um no campo da ficção, outro no campo do “real”.

Susan Sontag alega em seu estudo clássico Ensaios sobre a Fotografia, escrito na década de 1970, que a força moral das fotos de guerra estaria atenuada pela exposição em demasia. A nossa capacidade de reagir estaria minada pelo dilúvio dos retratos.

“A compreensão da guerra entre pessoas que não vivenciaram uma guerra é, agora, sobretudo um produto do impacto dessas imagens”, argumenta a escritora norte-americana em “Diante da Dor dos Outros”, livro em que traça uma iconografia sobre o assunto, com pinturas de Goya (1746-1828) a registros Guerra Civil Espanhola, do Holocausto às cenas dos atentados de 11 de setembro de 2001.

O que fazer da banalização da morte e da dor (do outro). Os vídeos do teatro-documentário de Rabih Mroué não exibem sangue e mortos. Ele explica na palestra que se trata de “double-shooting”: o registro é o contato do olho entre quem filma e o atirador. Existe o barulho do tiro, o som do celular e a incerteza se houve morte ou não. São esses vídeos borrados, sem tratamento, tremidos, que o artista busca dar um significado, um valor de revolução.

Questiono se a sociedade como um todo se transformou em espetáculo como vaticinou Guy Debord? Ou tudo é espetáculo, e a realidade não existe como defendeu Baudrillard? O que sei por ora é que recebi pequenos choques na central de comando da sensibilidade e percepção com a performance de Mroué. Eu que não passei por nada parecido. Que nem consigo imaginar o pavor de uma situação dessa, tenho meus registros sob o efeito dessas narrativas de dor, morte e banalidade da vida humana.