Corpos em risco na 7ª edição da MITsp
por Nathalia Catharina Alves Oliveira
Como escrever sobre o corpo e suas dramaturgias cênicas em um momento em que a simples existência e permanência do corpo passa a ser nosso maior bem? Em um momento em que, imersos na pandemia mundial da Covid-19, o que estranhamente nos une – como ideal coletivo – é a sobrevivência do corpo/dos corpos? De um ponto de vista romântico e, talvez, para acalmar ou iludir o coração, desejamos pensar que nesse momento somos todos iguais, dado que em princípio todos os corpos estão confinados em suas casas, assolados pelo temor de serem contaminados pelo vírus. Mas não somos todos iguais sob este estado de exceção mundial, salvo por um medo comum: a morte do corpo e a sensação de risco constante. Não somos iguais sob essa pandemia, primeiramente porque países como o Brasil – ideologicamente nomeado como um dos países emergentes do globo, com seu capitalismo neoliberal ascendente (deveríamos dizer, portanto, com sua ascendente desigualdade social) – não tem casa para todos. Assim, o confinamento é para poucos. E, quando sofremos de solidão em nossas casas, devemos saber que sofrer de solidão é para uma fatia estreita da sociedade. Para aquelas e aqueles (me incluo) que têm onde se confinar. Para aquelas e aqueles que podem se proteger do risco da contaminação, para as pessoas com um pouco mais de recursos que podem adiar um pouco mais a morte. E aqui gostaria de falar sobre o risco, sobre o risco dos corpos em alguns dos espetáculos da 7ª edição da MITsp, notando brevemente como os traços sociais de seus países de origem participam talvez da qualidade de risco – ou não – dos corpos em cena. Não posso deixar de considerar que esses espetáculos estão contextualizados nesse presente momento.
Aqui, desejo fazer uma breve trajetória entre Stabat Mater, da brasileira Janaina Leite, Tenha Cuidado, da indiana Mallika Taneja, e Multidão (Crowd), da franco-austríaca Gisèle Vienne, tendo como recorte a ideia de risco que pode – ou não – estar presente nos mesmos. Stabat Mater, palestra-performance da pesquisadora, atriz e diretora paulistana Janaina Leite, tem como material inicial de pesquisa o próprio corpo da atriz como documento vivo, real. A performance de Janaina junto à sua mãe em cena apresenta um corpo não representativo e em risco. Trata-se de um risco no sentido de ir ao extremo da linguagem performativa documental, nos convidando – a nós, espectadoras e espectadores – a vivenciar esse risco. Janaina nos propõe uma relação clara com o contexto histórico brasileiro, paisagem social que dá origem à narrativa documental do seu corpo. A violência em relação ao corpo feminino é marca secular do contexto brasileiro, o que me leva a pensar que o estado de exceção é algo permanente em nosso país e que o risco da violência está normatizado em nossos corpos. O risco em Stabat Mater está colocado como visceralidade, tanto na vida quanto na obra da atriz, sendo o corpo seu sujeito manifesto. Aqui, a fronteira entre o risco em vida (relacionado sobretudo à violência) e o risco do corpo em cena está mediada pela própria linguagem performativa, com seu endereçamento direto ao público.
Em Tenha Cuidado, da indiana Mallika Taneja, percebemos que o material de investigação se assemelha bastante ao material de Janaina. Ambas tratam da violência sofrida por corpos femininos; Mallika em seu contexto indiano, Janaina no brasileiro. É nítida, nesses dois países, a relação entre avanço econômico – para poucos –, aumento da desigualdade social, ausência de responsabilidade e cuidado social do Estado e violência contra o corpo da mulher. Não é de hoje, infelizmente, em nenhum dos dois contextos. Estamos em trágica “ascensão” da violência há algum tempo. Janaina e Mallika são duas – entre muitas de nós – que atestam e/ou sofreram agressões (física, moral) por parte de outros homens. Isso não é assunto privado, é público. E é esse caráter de “público” que ambas as artistas parecem instaurar, desta vez, “protegidas” do risco da violência a partir da mediação da linguagem, da cena em si. A linguagem funciona assim, nos dois trabalhos, como mediadora do trauma (um trauma normatizado socialmente, vale dizer) e, sobretudo, como estratégia deflagradora de que o trauma de um corpo diz respeito a uma comunidade e que, portanto, implica uma responsabilidade comum e coletiva de todas nós, sejamos nós mulheres, sejamos nós homens, sejamos nós trans, sejamos nós dirigentes, governantes, professoras, artistas, mães, pais.
Vale notar algumas diferenças entre os dois trabalhos, traços que também os tornam peculiares. Se no trabalho de Janaina o risco do corpo foi vivido em sua história real e em seu estatuto cênico esse risco permanece, dada a atitude performativa não representativa (endereçamento direto ao público, a presença de sua mãe, a cena de sexo real etc.), em Tenha Cuidado, Mallika está protegida não apenas por suas roupas, mas também por uma qualidade de estado corporal bastante distinta da de Janaina. De certo modo, em nenhum momento tememos pela vida de Mallika em cena. A linguagem, assim, o teatro, a caixa-preta, parece finalmente proteger o corpo de Mallika, como uma casa. Há uma espécie de tradução cênica do risco real que os corpos femininos sofrem na Índia. É como se ali, ao longo da performance, fosse finalmente possível respirar. Na cena não há risco, mas, sim, um ansiado descanso, uma elaboração “protetora”. O oposto ocorre na obra de Janaina, na qual o risco está tanto no documento real quanto em seu corpo em cena. A encenação e dramaturgia de Stabat Mater é montada de forma que em nenhum momento nos sentimos protegidas, mas expostas ao mesmo trauma vivido. Sua beleza está no compartilhamento visceral da violência, enquanto que em Tenha Cuidado a beleza está na recuperação, cuidado e acolhimento que a dramaturgia da cena propõe em relação ao corpo da mulher. No entanto, o que aproxima os dois trabalhos é o fato de apresentarem o corpo como emergência primeira e última do risco, assim como território de insubordinação à violência e tentativa incansável de subversão e superação do trauma. Igualmente, as duas obras localizam o risco do corpo feminino diante da violência como assunto coletivo e não privado.
Diametralmente oposto é o estatuto da obra Multidão (Crowd), de Gisèle Vienne. Se nos dois trabalhos anteriores podemos ver o risco como pulsão fundamental, em Multidão contemplamos corpos quase que espectrais, nos quais o risco parece existir em sua própria negatividade, na ausência mesma de risco, em uma espécie de proteção mágica. Na obra de Gisèle, os corpos não se configuram como territórios viscerais, tangíveis; não se endereçam ao público de forma direta, tal como ocorre nos dois trabalhos anteriores. Tampouco a dramaturgia corporal está interessada em performar documentos autênticos, reais, ao contrário, os corpos de Multidão estão refinados e protegidos pela própria impecabilidade técnica que acaba de certo modo tornando esses corpos impenetráveis, quase virtuais. O trabalho francês apresenta corpos de um contexto bastante distinto do nosso – brasileiro – ou do indiano, de Mallika Taneja. Se nessas duas outras paisagens sócio-político-econômicas o risco é condição de suas existências, na obra de Gisèle, esse mesmo parâmetro não pode ser observado, a não ser em sua via negativa, no sentido de sua inoperabilidade. O preciosismo milimétrico da dança, o domínio técnico e coreográfico, assim como a música hipnótica e contínua (tal como a de uma festa rave) parece criar um certo invólucro, uma espécie de mascaramento fantasmático dos corpos das/dos intérpretes, tornando esses corpos um território intocável e nesse sentido, ausente de qualquer risco: sem risco de ser afetado. Contrariamente à ideia do risco, que dialeticamente supõe o corpo como lugar de desejo, afetável, como presença a ser preservada e território de insurreição (sobretudo diante de um estado de exceção permanente da violência), o que está colocado em Multidão é um corpo que parece já ter desaparecido; corpos como espectros de uma vida que – quiçá – em algum momento existiu. O corpo em Multidão apresenta-se assim como presença negativada e, enquanto ausência, o risco simplesmente não seria elemento constituinte, tampouco observável.
Não me parece casual que as obras brasileira e indiana tenham o risco como elemento fundamental da criação e assunto dramatúrgico e que o espetáculo francês nos mostre um corpo virtualizado, impenetrável, no qual não parece haver espaço para o risco. Nos trabalhos de Janaina e Mallika, o corpo existe como local de emergência do risco, como sujeito a ser protegido e como território fundamental de superação e insubordinação. Já em Gisèle, o que talvez vejamos seja um corpo cujo risco não está posto em questão, cuja própria subjetividade se tornou espectral; seus corpos parecem, antes, marcados por um certo alheamento histórico, cujo confinamento está eternizado.
Se o corpo é a primeira e última casa que temos, nossa subjetividade em si, aquilo que nos resta, nosso primeiro e último bem, aquilo que tememos perder (instância primeira e última de desejo, risco e preservação), me parece louvável a presença desses três espetáculos na MITsp deste ano, nos dando a chance de olhar para nossos corpos em risco no presente estado de exceção que vivemos e, ao mesmo tempo, de ampliar nosso olhar sobre os riscos cotidianos que há tempos sofremos e a violência como o mais perverso vírus. Para além disso, o que me parece inequívoco aos três trabalhos é o fato de trazerem o corpo como território fiel e primeiro de nossos traços e rastros sociais, como sujeito de reflexão e ação estética e ética.