Texto sobre o espetáculo Tão pouco tempo, escrito por Welington Andrade (Revista Cult)             

A performance Tão pouco tempo, com dramaturgia e direção de Rabih Mroué e atuação de Lina Majdalanie, está baseada no encadeamento de pequenos simulacros, cujos efeitos de sentido advêm do modo muito fluido como o texto e as imagens se relacionam ao longo dos sessenta minutos que dura o trabalho. A base da narrativa apresentada pela performer é histórica e diz respeito, em caráter geral, à instabilidade política vivida no Líbano nas últimas décadas e, em particular, à guerra civil que se abateu sobre o país entre 1975 e 1990. Entretanto, sobre esse material realista é projetada uma parábola, tecida em torno da trajetória de um protagonista ficcional, o “mártir islâmico” Deeb Al Asmar, uma espécie de Cabo Jorge (o protagonista de O berço do herói, de Dias Gomes) libanês, aquele que se sacrificou por uma causa, sem nunca o ter feito. Assim, o real e o ficcional se interpenetram, evidenciando, de um lado, por meio de um jogo metalinguístico muito tênue, a incerteza que paira sobre aquilo que pode ser contado e realçando, de outro, não sem fazer uso de uma acurada ironia, a única certeza à qual podemos nos apegar em tempos de pós-verdades: a de que toda e qualquer realidade consequente se baseia na mais arrematada imaginação.

Simultaneamente às palavras que profere, Majdalanie manipula um conjunto de imagens, divididas entre as linguagens da fotografia e do vídeo, que, menos preocupadas em dar suporte temático à alegoria apresentada, constituem um exercício formal desenvolvido em paralelo à narrativa – e com o qual esta estabelece uma interlocução bastante complexa, que se configura, a rigor, na essência mesmo da performance, entendida aqui em sua origem etimológica, isto é, como uma “forma que atravessa”. Enquanto narra a história da fabricação de um ídolo, a performer dispõe à vista de todos de uma série de fotografias, lavadas por uma substância química que vai apagando as imagens pouco a pouco. A correspondência de tal ação com o itinerário nebuloso de Deeb Al Asmar é por demais evidente e parece tão somente disposta a dissimular o verdadeiro assunto sobre o qual de fato nos interessa refletir: a ideia do spectrum da fotografia, em caráter estrito, e a maneira como lidamos com os muitos espectros que nos rondam no mundo político e cultural, em sentido mais amplo.

Discutido por Roland Barthes em A câmara clara, o conceito de spectrum – palavra latina cuja raiz está relacionada não somente às noções de “espetáculo” e “espectador”, como também aos sentidos implícitos nos vocábulos “fantasma” e “ilusão”, por exemplo – atravessa a performance de ponta a ponta. A fotografia, afirma Barthes, “representa esse momento muito sutil em que, para dizer a verdade, não sou nem um sujeito nem um objeto, mas antes um sujeito que se sente tornar-se objeto: vivo então uma microexperiência da morte (do parêntese): torno-me verdadeiramente espectro”. Do mesmo modo, então, que, ao ressurgir do mundo dos mortos, o mártir Deeb Al Asmar se torna espectador de si mesmo e precisa constantemente refazer a própria história, cada um de nós, espectadores de Tão pouco tempo, se converte em uma testemunha de uma autocontemplação: ao desaparecimento das imagens (isto é, dos eidolon) fotográficas ligadas a um personagem que atrai nossa atenção, submergidas em líquido dissipador, corresponde nossa excessiva idolatria por imagens e ídolos para os quais olhamos incessantemente, embora eles nada nos digam. É do oco, do vazio e da ilusão de que se está tratando, afinal.

Em entrevista concedida a Cis Bierinckx (reproduzida no catálogo completo desta MITsp), Rabih Mroué declara ser a ausência um tema fundamental em seu trabalho. “Quando alguém está interpretando Hamlet, o verdadeiro Hamlet está ausente e o ator está tentando substituí-lo”, afirma o diretor para em seguida se recordar do fato de que 17 mil pessoas desapareceram na guerra civil libanesa e ninguém sabe até hoje onde elas estão: “Então, para mim, tudo é ausência”. Na segunda metade da performance, a simulação da presença da performer – isto é, a exposição do mecanismo de sua ausência direta em relação a nós – se dá por meio de um novo recurso técnico: Lina Majdalanie conclui a história do falso ídolo, fazendo uso de um longo depoimento transmitido em vídeo, levando o mundo da imagem em movimento a nos propor a mesma experiência a que nos conduzira a fotografia estática: a do retorno do morto.

Entre a banalidade do que é real e a punção do que é vivo parece transitar Tão pouco tempo. O logro a que somos submetidos diariamente pela profusão das imagens e de ídolos que consumimos é revelado com muita sutileza (a nos pungir, entretanto) pelo quanto-a-si do corpo da performer, que de modo icônico desaparece ao fim do trabalho, para que não a idolatremos com nossos aplausos tão reais… e banais.