Texto sobre o espetáculo Avante, Marche!, escrito por Ivana Moura (Satisfeita, Yolanda/ DocumentaCena – Plataforma de Crítica)

Persigo uma frase de efeito, um verso síntese para Avante, Marche!, espetáculo  belga estranhamente belo que abriu na noite de ontem, no Theatro Municipal de São Paulo, a 4ª Mostra Internacional de Teatro de São Paulo – MITsp.  Insisto com filósofos e poetas, enquanto a música de Beethoven, Verdi, Mahler, Schubert, Strauss, Elgar, Holst, entre outros, martela em minha mente à espera de tradução em palavras.

As imagens mais fortes e duras grudadas ao espetáculo, mas sem fazer parte dele, foram da abertura do evento, com as manifestações do público que vaiou os representantes dos poderes municipal, estadual e federal (parceiros das MITsp) que subiram ao palco, e literalmente não deixaram falar a preposta do ministro da Cultura do governo federal. Vaias e Fora Temer! ecoaram no Municipal num ato de quem não aquenta mais tantas manobras, digno de cidadãos livres que primam pela democracia.

Avante, Marche! traça conexões com a peça O homem com a flor na boca, de Luigi Pirandello, de 1922, no personagem de um trombonista que, portador de um câncer, fica impedido de tocar seu instrumento musical, e se refugia nas últimas fileiras da banda, munido de dois címbalos.

É tocante acompanhar a memória desse homem decaído, interpretado por Wim Opbrouck, suas angústias e enfado, sua pulsação de vida com a morte em seu calcanhar. E isso na vibração do sentido da arte para fazer frente à destruição. Suas respostas expõem um espectro de desespero e apostas na música.

Inexorável. A finitude humana. Apesar de todas as conquistas, não é possível fugir dessa certeza. Um dia acaba e desmorona a pirâmide de ilusões construída pelo ego, de poder, fortaleza, autonomia, beleza. As vaidades de reconhecimento e honradez. O ex- trombonista quase moribundo sente isso na carne.

A produção da NTGent e da companhia de dança les ballets C de la B combina concerto, teatro, dança contemporânea e ópera. Os diretores Alain Platel e Frank Van Laecke e o compositor e diretor musical Steven Prengels elegeram a tradição das bandas e fanfarras, que ocupam um lugar de qualquer cidade do mundo, para falar de abismos e de reminiscências da existência. Mas também investe na reflexão da convivência social com seus diferentes.

E em meio a tantas tramas e camadas, esses artistas fazem um tributo ao universo de bandas de fanfarras como metáfora da sociedade. E é interessante que sejam esses grupos capilarizados, que multiplicam a formação de instrumentistas, mas que em regra agonizam na sua sobrevivência no sistema capitalista. Mas resistem. Um posicionamento político frente ao domínio das celebridades. Para perturbar convenções.

Além dos atores e músicos da produção belga, também integram o elenco 18 musicistas brasileiros, sob a regência do maestro Carlos Eduardo Moreno.

A encenação amplifica possibilidades de leituras com a restrição de que apenas algumas cenas sejam legendadas, num espetáculo que utiliza diferentes idiomas europeus (inglês, francês, espanhol, italiano, alemão e um pouco de português). As ações simultâneas, as camadas, as músicas também apontam para vários caminhos. De ser o último ensaio do ex- trombonista à ficção projetada dentro da cabeça do artista.

O cenário de Luc Goedertier sugere uma sala de ensaio. Ao fundo um pano com grandes buracos, que funcionam como janelas, onde são realizadas ações. Numa delas, as duas mulheres vestidas de majorettes (balizas) formam um quadro de uma gigantesca menina que marcha.

Ecoa Beckett no início quando o protagonista articula seu solo com os címbalos ao som de Lohengrin: Prelude de Wagner, amparado por um gravador até quedar solitário no chão. Repercute Pina Bausch e seu Café Müler, enquanto o ex-trombonista assusta os outros integrantes da banda e dança em meio às cadeiras dos outros músicos.

Ele rejeita amores, pois a vida lhe escapa. Com Hendrik Lebon faz um dueto de dança vigorosa e flutua como uma leve bailarina, mesmo com sua figura corpulenta. Ao mesmo tempo que sugere esse passar o bastão da arte para outro apaixonado mais jovem. Há cenas emblemáticas, como o caminhar dos músicos com os sinos amarrados às pernas.

Numa fricção anárquica e engajada, a performance gargarejante com a água cria um efeito cênico perturbador. Ou seu enterro pelas mãos dos músicos ao som de Gustav Holst.

Como a ideia de reflexo da sociedade, frestas de machismo também são detectadas nesse universo tão masculinizado das bandas de música. Em uma das interlocuções do protagonista com os músicos ele pergunta a profissão de cada um deles. Quando interroga a mulher o foco é o desempenho sexual e os seus apetites.

O músico condenado cita Drummond e a pedra do meio do caminho. Perguntamos “…E você marcha, José! /José, para onde?”