Crítica sobre o espetáculo Para Que o Céu Não Caia, escrita por Mariana Barcelos (Questão de Crítica/ Documentacena – Plataforma de crítica)

Ao entrar na sala de espetáculo do Sesc Belenzinho, o público já havia se organizado em roda. Mais precisamente em arena, com um espaço ao centro para a apresentação. A sala, entretanto, é retangular, e nada ou ninguém exigia aquela formação. Os bailarinos entraram segurando caixas pretas que foram posicionadas nos cantos de todas as paredes. Horizontalmente enfileirados a frente de uma única parede, com pouca luz, o foco da cena exigiu do público um remanejamento arbitrário. No início, há frontalidade.

O espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da Lia Rodrigues Companhia de Danças, parte do livro A queda do céu, escrito pelo antropólogo Bruce Albert, com base em diálogo com o xamã Yanomami e ativista político Davi Kopenawa. Davi esteve presente na noite de ontem (18/03) e para ter, posteriormente, uma conversa sobre a peça. No livro, seu relato aponta para as causas do fim do mundo. Que são as mesmas que estão provocando o lento e contínuo desaparecimento de seu povo; que destroem florestas e recursos naturais; que nos destruirão a todos. Insistindo na repetição, Davi em sua fala deixou claro que o livro não é sobre eles, é sobre nós (todos nós). Nós e os modos de vida que exterminam o planeta. Na mitologia regida pelo deus Omam, o mundo acabará no dia em que o céu cair.

Fumaça. Após soprarem todo o pó de café que preenchiam as mãos em formato de cuia, a poeira que se forma borra todo o rosto e parte dos corpos dos bailarinos. Seguindo já uma espécie de ritual, os corpos nus são mais algumas vezes marcados a pó de café e a aparência definitiva é a de alguém que saiu de um soterramento ou de um trabalho exaustivo com a terra, como o garimpo, a mineração. ­ Esta imagem implica em muitas analogias e por isso cabe aqui fazer uma escolha para prosseguir o texto. As referências que disponho para olhar um corpo aterrado por café advêm de como o café me foi apresentado pela sociedade branca. Uma cultura importada, um hábito bem assimilado. Durante longo tempo coluna de sustentação da economia do país, financiador de repúblicas a base de muito desmatamento e massacres. O corpo nu cheio de café que encara fixamente os olhos do espectador, até o atravessar de toda a sala, instaura uma presença fantasmagórica, espiritual.

Chegando à parede oposta, um ritual similar se estabelece, agora com farinha branca. Vale para as minhas referências sobre farinha as mesmas do café. E o caminho de retorno ao lugar inicial começa no mesmo olhar que encara bem de perto o espectador. Vai ficando pelo chão os excessos de café e farinha que caem dos corpos, preto e branco, pegadas. Panos velhos encobrem as faces e grunhidos de dor tomam conta do espaço enquanto corpos se contorcem. Depois da fixidez do olhar, corpos vivos se elevam, como que retornados do pó. Dos pós de sepulto que já forram todo o espaço; e é sobre este cenário, que mistura odores e um chão de fim de mundo, que os bailarinos dançam.

Os deslocamentos do público pelo espaço seguem uma ordem intuitiva e relacional com os demais espectadores e com os bailarinos. Mais uma vez uma arena se forma, mais concentrada que a primeira, seduzida pela presença rítmica da marcação dos pés no chão, que reconfiguram sons e vibrações tribais no ambiente. Desta vez, a arena precisa ser alargada e há uma indicação para que o público se sente, mas nem todos o fazem. O corpo do espetador já está ligado ao corpo do artista e nem sempre é possível seguir a orientação. O corpo decide, o corpo pensa, é ético.

As pequenas conversas entre os espectadores ao longo da dança e um pouco do que foi perguntando a Davi Kopenawa posteriormente, entretanto, colocam uma questão. A curiosidade em relação aos pós, que faziam com que as pessoas se abaixassem para tocar e cheirar, para que pudessem identificar a substância, era seguida de uma tentativa de interpretação e realocação representativa do café e da farinha dentro de uma suposta cultura indígena – o café representaria tal outra coisa, talvez uma erva, a farinha outra coisa ainda e assim seguia-se uma busca via uma reflexividade que excluía a materialidade, o corpo, o fato. Por quê? Perguntaram a Davi o que ele havia sentido com a apresentação, como ele pensava, entendia, compreendia, etc., aquilo. As respostas, bem diretas, traziam quase sempre uma imagem concreta da experiência. “Eles dançaram a dança das árvores e do cipó”. Ele gostou.

O xamã também disse que precisou da ajuda do amigo (Bruce Albert) para escrever o livro porque nós (sociedade branca) somos ruins de escuta, só gostamos de ler. Quando ele fala, não entendemos. É possível também que não enxerguemos nossos vícios de recepção, mas isso Davi não disse. Nossos corpos, no espaço do público, já estavam pensando, se afirmando, dizendo. Desde a primeira arena, formada sem indicação, daria para perceber que a frontalidade é ativada por um mecanismo de opressão, que impõe uma hierarquia, fácil é estar em círculo. Que café é café, farinha é farinha, segundo nossas referências, e com elas já é possível seguir; partamos delas, se é sobre nós, para impedir que o céu não caia sobre todos nós, precisamos nos ater ao nosso lugar – que é o do destruidor. É um vício tentar reconhecer a partir de um vocabulário cosmológico que não temos um sistema representativo que não nos pertence, a menos que se queira forjar uma ancestralidade que nos foi cooptada.

Se o corpo nos une e a razão nos separada, fiquemos com os corpos, eles sabem o que fazer, pensam mais rápido. O corpo nu estava vestido, de pós, de História, e sabia o que era preciso fabricar: uma dança. E os nossos corpos vestidos e protegidos, resistindo a própria invisibilidade, estavam em ação. Eles ainda estão vivos, não podemos soterrá-los com as nossas ideias de recepção. É sobre nós, mas não é autorreferente. Como olhar para o outro sem nos ver? O homem nu sabe se vestir com as piores coisas, o vestido tem dificuldades de ficar nu.

Quando se fala da Lia Rodrigues Companhia de Danças, puxa-se sempre o mote do trabalho político – que mescla temáticas, biografia da coreógrafa, geografia da sede da cia… não que não haja componentes políticos em todos esses vetores, contudo, no trabalho da Lia, não é uma “dança política” que protagoniza as montagens, mas sim a política do corpo, e diante dela, as contextualizações são apêndices.

Obs.: Davi Kopenawa quer que nos unamos contra o comportamento humano que fere o planeta gerando destruição. Ele é uma dentre tantas lideranças políticas que brigam contra cafés, farinhas, jucás, estados, homens vestidos, etc. Eu anotei o que significa “Kopenawa” em algum lugar, mas não encontrei. Mesmo assim, posso dizer que, segundo minhas referências de sociedade cristã, “Davi” é capaz de vencer gigantes.