Texto sobre o espetáculo “Cavalgando Nuvens”, escrito por Ivana Moura (blog Satisfeita, Yolanda? / DocumentaCena)

Cavalgando Nuvens, o terceiro espetáculo do libanês Rabih Mroué na programação da Mostra Internacional de Teatro de São Paulo MITsp 2017, concebe movimentos entre os dados de uma possível biografia do irmão do encenador, Yasser Mroué, recebe marcas de um relato familiar e assume traços políticos da configuração do mundo contemporâneo como história coletiva.

Yasser Mroué foi baleado na cabeça por um atirador em Beirute, em 1987, quando tinha 17 anos. Sobreviveu com sequelas físicas e emocionais. No espetáculo, ele assume os papeis de ele mesmo como pessoa real, de uma figura criada e do espectador crítico/comentador de ambos. A narrativa está tensionada pelo suposto impulso contraditório do ficcional e do real.

Como nas duas outras peças de Rabih Mroué na programação da MITsp – Tão Pouco Tempo (sobre a construção de mitos, autorretratos e imagens de mártires no Líbano) e Revolução em Pixels (palestra performance que investiga o ato de documentar, através dos telefones celulares, a morte de quem portava aparelhos nos primeiros anos da revolução na Síria)- “Cavalgando Nuvens” se estrutura em fragmentos.

Os conceitos de fato e ficção são subvertidos, questionados. A verdade é acossada para assumir outros estatutos de linguagem. O performer faz os relatos, utiliza os vídeos pré-gravados, imagens e textos. Os dados são expostos de maneira não-linear, criando um ambiente de quebra-cabeça para o espectador montar a partir do repertório próprio de cada um.

Yasser Mroué se mostra uma figura complexa. Também fracionada e por isso mesmo multiplicada em muitas personalidades. Ele mesmo narra sua história na primeira pessoa, conta como foi o processo de construção do espetáculo teatral, a negociação com o próprio irmão na escolha dos materiais usados na peça (como a seleção dos vídeos produzidos). Como sobreviveu depois do tiro, quando foi colocado ao lado de corpos mortos e alguém o resgatou para ser submetido a uma cirurgia.

A estrutura é bem parecida com a de Revolução em Pixels. Sentado em um lado do palco, com uma mesa, equipamento e material em vídeo que ele mesmo manipula e um telão enorme em que são projetadas as imagens e as traduções.

Ele perdeu alguns movimentos, manca de uma das pernas. Como sequela, ficou uma afasia, que no seu caso o privou em parte da locução e do entendimento da linguagem gestual, falada e escrita. E o comprometimento para discernir representações.

O ator passa por um processo de reaprendizagem de relação com a linguagem, exercita ideias abstratas e revela-se um poeta.

Em Cavalgando Nuvens, Yasser exercita várias facetas do humor, amplifica o lirismo diante do sofrimento e se mostra tocante em toda sua humanidade.

O efeito da afasia de Yasser é utilizado por Rabih Mroué como disparador de questionamento na cena do regime ficcional e do estatuto mimético no teatro contemporâneo. Das três peças, talvez seja a mais direta nesse quesito, com a exposição da dificuldade do ator com a representação das coisas, objetos e pessoas quando são apresentadas fora do regime do real.

Também pelo próprio ator expor sua história, mesmo que não fique claro até onde é um acontecimento ou criação artística a partir de fato, essa narrativa tem uma potência mais emotiva. No meu caso, me peguei tocada, sensibilizada pela fragilidade da vida, o imponderável que traça curvas estranhas para os humanos e as possibilidades de superação que arte do teatro oferece como chaves concretas para um ser vivo.

A experiência de Cavalgando Nuvens desestabiliza certezas dos limites entre ficção e realidade, simulação, representação, performance, presentação. O nome real do ator na cena produz um “efeito de realidade”, mas as fronteiras borradas desequilibram o estatuto ficcional e provocam outros caminhos. Ainda mais perturbador quando o texto da peça afirma que “no teatro, tudo pertence à ficção”. Mote para muitas reflexões.