A escuta das histórias: vozes, silêncios e lutas em paisagens sonoras
por Wellington Júnior
A política é uma techné, pertence às artes e pode ser equiparada a atividades como a medicina (healing) ou a navegação, onde, tal como na performance do dançarino ou do ator, o ‘produto’ final é idêntico à própria performance.
Hannah Arendt
Na maior parte das artes modernas, o som é o único elemento constituinte da linguagem artística que se projeta facilmente além da quarta parede – em um palco ou uma tela – e mergulha no público. Seja pelo uso dos canais da parte de trás das plateias em uma configuração cinematográfica de áudio 5.1, seja pelo uso estratégico de alto-falantes colocados em um cinema, o som pode atrair nossa atenção ou girar escondido em torno de nós.
Com que finalidade essa sonoridade media nosso envolvimento com o ambiente espetacular e a sociedade como um todo? Já houve no teatro várias experiências com a sonoridade, seja através de fones de ouvido, da experiência do silêncio ou das disposições espaciais/edições do material sonoro na cena. Cada peça tem uma abordagem sonora diferente, mas todas nos forçam a filtrar nossos pontos de vista para ver/ouvir o que muitas vezes se esconde “à vista” de todos. Aqui nesse texto vou analisar os espetáculos Sábado Descontraído e Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe por seus atravessamentos com suas paisagens sonoras e lutas históricas.
As vozes do grito
O espetáculo Sábado Descontraído, da atriz Dorothée Munyaneza, tensiona palavras, dança e música para desvelar a história do genocídio de Ruanda que forçou a atriz a sair de sua casa em Kigali aos 12 anos. Ela descreve como 800.000 pessoas morreram em apenas 100 dias; como ela perdeu amigos e familiares; como ela, o pai e o irmão escaparam para o campo, vestindo roupas cheias de piolhos e dormindo ao ar livre em uma lona.
A encenação traz para o centro do debate as narrativas sonoras que em cada cena vão amplificando a tragédia pessoal de várias famílias. Um rádio é o foco das tensões sociais a partir de suas notícias e de suas músicas. Em cena, Dorothée Munyaneza e Nadia Beugré evocam testemunhos dessas narrativas de resistência enquanto o músico Kamal Hamadache cria sons que tensionam as vozes das atrizes.
Assistindo ao espetáculo, notamos a atual importância de obras que transitam entre imagem e som. Instalações sonoras, objetos musicais, som 3D, ruídos auto gerados e jogos sônicos interativos constituem um grupo heterogêneo de obras que passaram, nas últimas décadas, a atingir um alcance maior. São obras que exploram as adjacências conceituais da escuta. A instalação sonora proposta pela encenação de Sábado Descontraído nos desloca constantemente entre as imagens corporais que produzem sons/palavras e o dispositivo sonoro utilizado pelo músico.
Esse ir e vir entre sonoridades é também o processo de montagem das narrativas na dramaturgia. São os gritos dessas famílias que explodem como fantasmas da história de Ruanda. O dispositivo sonoro altera os objetos de cena (facas, pedaços de pau) e inventa uma nova política de uso desses instrumentos do cotidiano. O som do espetáculo é um ouvido das histórias, seja por suas vozes, gritos de resistência, seja pelos instrumentos de lutas (facas, pedaços de pau).
Paisagens sonoras
O espetáculo Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe foi criado no ano de 2017 na Documenta 14 de Kassel e é a primeira parte de uma trilogia. Phia Ménard segue os caminhos de uma super-mulher-punk que objetiva construir uma casa e ao final perceber suas ruínas. A personagem vai montando por etapas essa casa de papelão. Na medida em que constrói, vamos observando as fragilidades do material e de sua estrutura de sustentação, até que tudo se rompe. Essa é a composição da imagem da cena – a construção e a destruição dessa casa de papelão que em um determinado momento perceberemos que é o Partenon grego.
Enquanto essa composição vai se estabelecendo, temos o silêncio e alguns sons que explodem como a queda de um muro sonoro que, ao cair, nos liberta das certezas das imagens. A contemplação das ações de Phia Ménard é acompanhada também de uma paisagem sonora.
A paisagem sonora (soundscape) é um conceito forjado no contexto dos estudos de ecologia acústica pelo musicista e ambientalista canadense Murray Schafer. O termo se refere tanto ao ambiente natural acústico, sons geofísicos, orgânicos, como aos sons de animais, além dos sons de espaços públicos urbanos, conversas humanas, composições musicais, máquinas e aparelhos em funcionamento. Circunscreve todas as manifestações de som, suas combinações e as camadas que se sobrepõem em sincronicidade num mesmo ambiente. Esta “earcology” procura estudar as relações complexas entre ambientes sociais, sonoros e estéticos (SCHAFER:1968).
No contexto da arte, as paisagens sonoras são muitas vezes mistos de sons naturais, processados e artificiais. São obras que criam sensações de ambientes acústicos particulares, ambientes imersivos. Obras de paisagem sonora se relacionam diretamente com a arte da instalação e muitas vezes são construídas para o lugar (site specific). No trabalho de Phia Ménard, observamos esse caráter imersivo quando identificamos (ou quando a obra cria) distúrbios na contemplação.
Neste espetáculo, o espaço passa por um processo de ressignificação, pois ele se faz e se desfaz revelando sua materialidade perecível. Há um tensionamento no espaço acústico da encenação a partir dos embates entre silêncio e ruído (entre o vazio do silêncio e o impermeável do muro sonoro do ruído). Os dados físicos do espaço (a partir da instalação das caixas de som no teatro) passam a fazer parte da teia conceitual do processo artístico, mostrando como a imersão na paisagem sonora se apresenta para o espectador. Somos fisgados e ao mesmo tempo detidos.
A luta da escuta
A escuta pensada como um lugar de atravessamento pelo âmbito do mundo que rodeia as pessoas: pela história do mundo ocidental e pela memória dos sujeitos. O fora da cena (o entorno) se apresenta na espessura interna dessas paisagens sonoras. Os espetáculos Sábado Descontraído e Contos Imorais – Parte: Casa Mãe são atravessados pelas imagens da localidade e pelas questões sociais, políticas e econômicas que o horizonte de seus dispositivos sonoros colocam em jogo.
Estes dispositivos sonoros produzem e reproduzem o real fraturado pelos corpos, pelas histórias. Eles recortam as imagens sonoras da realidade natural, urbana, dos corpos, para organizá-las e distribuí-las aos espectadores. No mais puro dos postulados fenomenológicos, o trabalho sobre a percepção engaja um trabalho sobre a concepção: ele demanda uma elaboração ou uma reelaboração das maneiras de compreender sons e imagens.
Essa reelaboração das paisagens sonoras nos faz refletir de que modo podemos repensar a política hoje; requer uma reformulação radical das relações quase ontológicas no imaginário político ocidental entre movimento e cidade. Nossas relações de convívio nas cidades estão retratadas nas cenas desses dois trabalhos apresentados na MIT-SP a partir das percepções sonoras e ativando novas experiências de escuta – uma escuta com o outro, uma escuta compartilhada como uma experiência democrática –, um movimento de ir e vir na escuta. .
Nos espetáculos Sábado Descontraído e Contos Imorais – Parte: Casa Mãe, vemos essas paisagens sonoras serem construídas a partir de instalações sonoras e seus dispositivos espaciais – uma arquitetura de sonoridades da cidade, da pólis. As histórias são escutadas a partir de outras percepções da cidade e da cidadania. Então podemos, nessa política da escuta, trazer uma paisagem sonora das vozes e silenciamentos esquecidos nas histórias oficiais. Ouvir também pode nos permitir criar mundos completamente diferentes em nossas cabeças.
Referências bibliográficas