Texto a partir do espetáculo Tão pouco tempo, escrito por Daniel Toledo (Horizonte da Cena / DocumentaCena – Plataforma de Crítica)
Logo de início, parece importante ressaltar, somos informados através de legendas de que estaremos diante de personagens e situações ficcionais. Com direção de Rabih Mroué e atuação de Lina Majdalanie, a palestra-performance Tão Pouco Tempo se volta a capítulos recentes da historiografia libanesa para, através de um personagem fictício, problematizar a criação de mártires e heróis, questionando a personalização que, seja no Oriente Médio, na América ou em outros cantos do mundo, costuma caracterizar as narrativas que construímos para compreender e explicar as histórias da qual fazemos parte.
A partir de uma encenação relativamente simples e decididamente não espetacularizada, dentro da qual recursos cênicos como geração de imagens, operação de som e até mesmo contrarregragem estão sempre visíveis e são operados pela própria performer, acessamos um ambiente que aos poucos se configura como uma espécie de laboratório de revelação fotográfica. Paralelamente a narrativa que remete a trajetória de Deeb Al-Asmar, nosso mártir fictício, o que se constitui neste laboratório, no entanto, é um processo inverso ao que conhecemos: ao serem mergulhadas em um tanque de água, os retratos manipulados pela artista, que trazem imagens de si mesma em diferentes momentos da vida, progressivamente se apagam, gerando certa atmosfera de incerteza em relação aos documentos e memórias que constituem nossas histórias pessoais e nacionais.
Iniciada em tom distanciado, sereno e por vezes irônico, a narrativa que nos apresenta ao personagem central dessa ficção ganha, pouco a pouco, ares de realismo fantástico. Por meio de um radical exercício artístico de imaginação social, a dramaturgia concentra, na curiosa trajetória de Deeb, seguidas reviravoltas que vez ou outra remetem a histórias de mártires que conhecemos, ou ainda a alguma das versões que desdobram cada uma dessas histórias. Revisitamos, ao longo dessa narrativa, imagens conhecidas como a multidão que vai ao funeral, a grande imprensa e sua exagerada cobertura, a família que se mobiliza para organizar um dossiê sobre o morto e a praça que ganha uma estátua com sua fisionomia. “Um mártir que seja capaz de unir as pessoas”, escutamos, a certa altura.
Instalada no centro da cidade, entretanto, a estátua que homenageia o mártir pouco a pouco revela-se, também, como uma narrativa ficcional, a exemplo de tantas outras que não raro trazem imagens e discursos muito mais heróicos – e menos complexos – do que os episódios e personagens a que se referem. Somos convidados, então, a imaginar uma paisagem bastante familiar: a praça cívica esvaziada de seu potencial político, refém de uma narrativa hegemônica, instrumento de estabilização de uma dinâmica histórica e social em permanente transformação. E somos convidados também, quem sabe, a decifrar os significados de nossas estátuas, dos corpos mortos que mantemos vivos entre nós.
Mais adiante, quando o suposto martírio de Deeb, assim como a própria estátua, se revela como farsa, somos provocados a vislumbrar outras imagens, dessa vez menos realistas e mais relacionadas ao caráter fantástico da narrativa. Ouvimos, por exemplo, sobre o mártir diante da estátua, diante do próprio túmulo e, finalmente, convertido, ainda em vida, em estátua de si mesmo. Fenômeno que, ali, acomete a seres humanos, mas que possa também, talvez, atingir a nações inteiras, quando, muitas vezes, em cenários de guerra, se mostrariam mais interessadas em preservar estátuas, monumentos e santuários de outros tempos do que em defender aqueles que estão vivos e lutando. “Somos todos projetos de mártires”, proclama a performer, continuamente revendo, ao longo da narrativa, os possíveis significados do termo.
Vencedores, perdedores, prisioneiros e presos libertados são personagens dessa história, cuja distância geográfica e geopolítica não necessariamente nos furta de traçar paralelos com nossa experiência sul-americana. O que se estabelece, em cena, afinal, parece ser um debate sobre algumas vidas que supostamente valem mais, e outras que, segundo a mesma lógica, talvez valham menos – e isso acontece em toda parte. Ao problematizar a personalização da história, a montagem de Rabih Mroué e Lina Majdalanie toca, ainda que de relance, nas recentes revoluções árabes, celebradas, em cena, como momento histórico em que o povo, não somente nos países árabes, finalmente se mobilizou “por si mesmo” e ocupou, quem sabe, aquela e também outras praças antigamente habitadas por estátuas de herói mortos.