Por Alvaro Machado
Nos Diálogos Transversais, ação do eixo Olhares Críticos, a 4ª MITsp convidou o líder indígena e xamã Davi Kopenawa para assistir ao espetáculo Para Que o Céu Não Caia, da coreógrafa e encenadora paulista Lia Rodrigues, com integrantes da Escola Livre de Dança e Centro de Artes da Maré, com sede no Complexo da Maré, Rio de Janeiro.
Após acompanhar o espetáculo pela segunda vez, Davi se reuniu com o público em um dos auditórios do Sesc Belenzinho para palestrar. Cumprimentou os presentes primeiro em língua yanomami, com a intenção de sublinhar sua condição de “filho da Amazônia”, como explicou em seguida, em português. Declarou-se, então, emocionado por entrar naquela “casa” (…), “chamado para ver na dança a herança indígena e a origem do povo yanomami”.
Kopenawa explicitou sua atuação enquanto “liderança indígena que trabalha e luta para os direitos do povo yanomami e de outros povos tradicionais do nosso país, o Brasil” e, na sequência, falou sobre seu livro A Queda do Céu (Cia. das Letras, 2015): “É a sabedoria do nosso povo o que vocês estão lendo, a sabedoria que guardamos sem papel, [pois] o nosso histórico a gente guarda na memória, aqui [aponta para a sua cabeça], porque não se pode destruir a Natureza para fazer livro”.
Em dezembro último, na 32ª Bienal Internacional de São Paulo, Davi já abordara o assunto do desmatamento florestal para a produção de celulose. Declarou, então, ter cumprido seu “dever” de registrar em livro a história yanomami “para o aprendizado do branco”: “Nunca mais vou escrever outro livro, porque os antropólogos já cortam árvores demais para isso. Mas eu sei que vocês gostam de ler”.
Sobre a obra, escrita em parceria com o tradutor da língua yanomami e antropólogo Bruce Albert para divulgar a história de seu povo, Davi explicou: “No início do mundo, nosso céu já caiu uma vez, porque o céu e a terra estavam muito fracos. Então nosso rei, Omã, criou o primeiro homem, plantou a floresta e colocou os rios, as montanhas e tudo o que está dentro do mundo. No livro, eu queria mostrar o caminho de sobrevivência da nossa terra, para nós vivermos bem sem destruir e derrubar a Natureza e a Terra, sem sujar os rios, sem poluir a floresta”. disse.
Sobre a escritura do livro, disse: “A floresta é prioridade para nós todos, não só para mim. Por isso gravei minha fala com meu amigo Bruce. Ele passou um ano na nossa comunidade, escutando e conhecendo a realidade do nosso povo e da floresta, aprendendo a nossa língua. A maioria dos antropólogos, que moram em outros países, vai até a gente para pegar a nossa sabedoria, para [fazer] biopirataria, roubar nosso conhecimento e colocar no papel, para fazer os livros deles. Mas e o nosso livro? Não gostei disso e então cobrei meu amigo: ‘Olha Bruce, vamos escrever o meu livro. O antropólogo também escreve, mas eu queria contar eu mesmo a sabedoria do povo da terra daqui’”.
“Eu vim aqui hoje para falar dos nosso problemas, da aldeia e da comunidade, do problema dos invasores da nossa terra (…), dos políticos públicos que gostam de derrubar as florestas, de cortar nossa madeira para levar para outro país, de garimpar nossa terra e sujar nosso rio. O livro A Queda do Céu é mensagem para vocês entenderem que nós, yanomamis, também sabemos falar, sabemos pensar, sabemos defender nosso planeta e a nossa floresta pulmão do mundo. Nós sabemos escutar o planeta e o som do mundo”, disse. “Agora muita gente está lendo o livro, o francês e inglês estão lendo, nós traduzimos em três línguas para vocês pensarem e respeitarem os direitos do povo indígena, nossa cultura, nossa língua, nossa dança e nosso canto”, completou.
Sobre a recepção da obra: “Eu vejo que nossos jovens estão lendo, mas os velhos estão viciados, não querem saber da minha palavra. Os novos estão crescendo e estudando. Vão olhar a floresta amazônica e aprender a preservar. Eu aprendi a sabedoria e fiquei [me tornei] pajé, sou xamã e conheço a ciência, conheço a sabedoria da floresta, e aprendi por tomar [aspirar] um pó das árvores sagradas das montanhas [a substância yakoana]. Os pajés têm muito poder, são muito fortes, eles são a segurança dos xapiri [espíritos] para segurar a onda do nosso céu. Vivo, o povo yanomami não vai deixar o céu cair. Se o governo e vocês ajudarem, vamos viver por muitos anos. Mas se o povo da cidade deixar adoecer todos nós, vem o perigo do céu. Os pajés só cuidam do céu, e nós, as lideranças indígenas, cuidamos das florestas, para não deixar sujar e destruir. Vocês só cuidam das suas casas, mas se ajudarem, o céu vai demorar para cair. Vocês precisam falar com as autoridades, com senadores, com governador”.
Sobre o aquecimento global: “Muita gente fala de mudança climática e me pergunta: ‘Por que o mundo muda?’. E eu respondo: ‘Eu não sei, eu não sou destruidor da minha terra, quem tira o subsolo são vocês, então o problema é seu, cuidem da terra, que os pajés cuidam do céu’. Hoje ainda existem uns duzentos pajés [yanomami]. Amanhã eu já volto para minha casa, mas a luta continua.”
A mediadora Verônica Veloso, encenadora do Coletivo Teatro Dodecafônico (SP), mencionou o espetáculo visto como alimento “para pensar outros mundos” e perguntou a Davi sobre a contribuição do índio nesse sentido. Citou o antropólogo Eduardo Viveiros de Castro, que teria afirmado que o índio sonha muito mais longe que o branco. Para Davi, “o nosso indígena é mesmo diferente, porque o yanomami usa a yakoana, que é a nossa escola, é como nosso papel, ele é a ciência do xamã, do xapiri. Quem não usa yakoana sonha com espíritos maus, com coisas como pescar, caçar [trabalhar]. O sonho do pajé vai mais longe, porque usamos a zarabatana, a nossa caneta [para soprar yakoana nas narinas], para poder entrar na alma da gente, como o nosso criador Omã ensinou, para não deixar cair o nosso céu, o nosso mundo. O povo da cidade não sonha. À noite dorme pouco e só fica andando e pensando, sonha que está construindo casas e cidades, só sonha ganhar mais dinheiro. Os caminhos são muito diferentes, e o sonho do yanomami é cuidar da floresta amazônica, da saúde que respiramos”.
Indagado pelo público sobre reconhecimento de identidade yanomami na dança apresentada, respondeu: “Eu senti, porque já conheço a dança da civilização, desde pequeno sonho muito com ela. A dança da Lia é muito forte para chamar a atenção de vocês e sacudir a cabeça do povo da cidade, para ele acordar e ver a floresta. Então eles dançaram aqui a arte das árvores, a arte do cipó, a arte da pedra, a arte do rio. Eu senti porque na minha aldeia meu sonho viaja muito e se encontra com esse tipo de dança feita com a Natureza. Achei muito bom para chamar a atenção das autoridades, para o respeito [da] lei que está escrita na Constituição Federal. Minha alma ficou feliz”.
Em resposta a pergunta sobre o que percebera dos materiais utilizados no espetáculo – pó de cacau, pó de café, farinha de trigo e cúrcuma –, Davi notou: “Achei parecido com a yakoana, que é a raiz que deixa meu povo entrar no espírito da floresta. E nós ouvimos eles imitarem o grito da montanha, imitarem o nosso grito quando o branco corta e mata. Eles representaram isso, o grito da floresta”.
Perguntado sobre as mazelas atuais da nação yanomami, esclareceu: “O problema principal que estamos enfrentando são as invasões de garimpeiros. Eles entram porque sabem que Roraima é terra rica de madeira e de subsolo. No ano passado pedimos para a Funai, que seria assim como o nosso pai, para nos ajudar, mas não aconteceu nada. O governo e o ministério público também têm responsabilidade, e a Polícia Federal, mas eles não escutam e agora estamos invadidos por quatro mil garimpeiros. Os rios estão cheios de balsas matando os peixes, deixando problemas, estragando nossa saúde. A malária está se espalhando de novo e agora entrou o HIV, por causa dos garimpeiros que usam as nossas índias. Cinco rios da região, como o Catrimani, que atravessa o território, estão poluídos. O Ibama e o Exército ajudam, mas não dão conta, expulsam os garimpeiros mas eles voltam, porque são viciados. A organização autônoma de saúde yanomami continua a existir, mas o Ministério da Saúde não ajuda. Se não tivéssemos vacina, nosso povo já teria sumido da face da Terra. Então agradeço só um pouquinho o governo, não agradeço muito, porque por outro lado ele não está ajudando, está deixando entrar os garimpeiros. O governo novo não quer olhar para a gente, o presidente está fraco e não tem projeto para ter avião, para pagar funcionários e ir atrás dos garimpeiros e ladrões, eles estão ocupados só com os problemas deles”.
Presente ao encontro, a fotógrafa Claudia Andujar, que nos anos 1970 ofereceu contribuição decisiva à demarcação do território yanomami, comentou: “Também não tenho muita esperança nesse governo. A Funai nem existe mais na prática, só existe o nome, mas ela não faz mais nada. A questão do garimpo nós conhecemos bem, mesmo na época do reconhecimento da terra, em 1973, já existia o problema, que só cresce. Os rios estão contaminados e deveria haver multas de verdade para mudar tudo, mudar as leis. Por exemplo, atualmente o governo federal quer legalizar os garimpos e a mineração em terras indígenas, e isso é o contrário do que se poderia fazer para eliminar os males. Não sei se Davi vê um futuro menos trágico do que eu vejo. De mais otimista, só posso dizer que percebo que a sociedade tem mais interesse na questão indígena do que há vinte anos, mas isso não é suficiente para mudar as coisas, é preciso muito mais esforço.”
“O futuro não é só do índio, é de todos nós, juntos”, respondeu Davi. “As autoridades dizem que não têm dinheiro para nos proteger. Então, nosso futuro é acabar devagar, não de uma vez. A doença vai matar devagar todo o meu povo yanomami. Hoje entrou a doença câncer, e o HIV está muito alto nas aldeias indígenas. É assim que estamos morrendo, e o governo não manda remédios, nem médicos. Os médicos não querem sair da cidade, só querem curar o grande. Nós criamos uma organização de saúde autônoma, mas agora políticos como o senador Romero Jucá (PMDB) estão querendo tomar a nossa saúde, querem municipalizar a saúde indígena, e eu sou contra”, concluiu.
Embora o encontro com a liderança – expressamente ameaçada de morte por agentes de garimpo em 2014 – tenha evidenciado desalento ante a atual situação da etnia yanomami no Brasil, com territórios demarcados invadidos maciça e sistematicamente por garimpeiros particulares e até mesmo por mineradoras, sem que os governos estadual e federal tomem qualquer providência, cumpre ressaltar, de outro lado, que “os índios são especialistas em fim de mundo”, para citar novamente Viveiros de Castro. E ainda que muitas etnias americanas contemplem em suas cosmologias escatologias como a mencionada por Davi Kopenawa – ou seja, o mundo que conhecemos iniciou-se com o término de um ciclo, uma “queda do céu”, e deverá terminar em outra queda desse gênero –, a exemplo dos índios hopi da América do Norte (inspiração do filme Koyanisqatsi, de Godfrey Reggio) e os Apapocuva-Guarani, entre centenas de outros povos autóctones sul-americanos, Davi apontou, em sua resposta à fotógrafa Claudia Andujar, um “fim que vai chegar devagar”. Caso contrário, isto é, se o fim estivesse ao alcance da mão, o xamã não estaria vindo a público conclamar a sociedade branca a colaborar com a preservação de sua etnia.
Para citar novamente os hopi, a escatologia dos yanomami coincide curiosamente com as lendas daquele povo a vaticinar destino planetário coletivo, pois no livro A Queda do Céu, que antologiza o conhecimento de seu povo, Davi afirma que quando o céu dos índios desabar, quando o ecossistema no qual vivem falir a ponto de não mais permitir seu modo de vida, o céu cairá também sobre as cabeças das outras criaturas vivas, mesmo para muito além do habitat indigena, a dizimar também a sociedade branca cuja existência é deles conhecida há milênios, sem que fosse necessário para isso qualquer contato direto com o homus cartesiano. Pois como contou Davi em sua conversa no bairro paulistano do Belenzinho, ele “já via a dança da Lia Rodrigues e dos brancos muito antes, quando era bem pequeno”. O xamã nasceu em 1956, e os primeiros contatos com sua etnia só se deram doze anos depois.