Tessituras do presente

por Nathalia Catharina Alves Oliveira

O que Fazer Daqui para Trás @Guto Muniz

No trabalho O que Fazer Daqui para Trás, de João Fiadeiro (de Portugal), uma mesma ação se repete ao longo de uma hora de espetáculo – de processo –, porém a cada repetição uma/um dos cinco intérpretes traz à cena um ponto de vista sobre questões que emergem de seu corpo após correr pelas ruas ao redor do teatro. Uma atriz entra correndo pela porta do fundo, para ofegante diante do microfone e fala sobre pessoas que ela viu nas ruas estarem conectadas por um fio. Ela corre e sai pela porta lateral do teatro. Espera. Uma certa ansiedade é criada na plateia. Outra atriz entra em cena, igualmente correndo, sua fala inicia com “É como se…”. Sai. Outro ator, ao longo de todas as suas entradas, procura encontrar, ocupar, questionar os limites do corpo. Mais outro entra (na mesma ação em looping: correr, entrar pela porta do fundo, falar e sair pela porta lateral) e expõe questões sobre o tempo, passado, presente, futuro. Outra atriz entra e falará sobre as palavras. Quais palavras querem emergir do corpo após a exaustão da corrida? A vontade não é do ser que fala, a vontade é da própria palavra. Palavra e corpo como experiência.

Os textos nascem da ação de correr ao redor do teatro. A “cena” começa, portanto, fora do espaço convencional dedicado a ela; começa no espaço comum, aquele que nós (os da plateia) também ocupamos. Em um dado momento a faxineira que trabalha no teatro atravessa o corredor dos camarins. Essa moça também faz parte da peça? Sim. Os atores estão em uma experiência em tempo real, tentando construir um presente, lidando exatamente com a efemeridade do agora, com esse tempo “que escorre entre os dedos”, como um dos atores dirá. Mais adiante, o mesmo ator olha para o relógio tentando captar o preciso instante presente, dizendo: “Agora! Agora! Agora!”, mas cada instante já é um outro agora.

O que Fazer Daqui para Trás pode ser apreciada como uma experiência de narrativa em abismo (mise en abyme). O termo criado pelo escritor francês André Gide em 1893 diz respeito àquelas obras (sejam elas visuais, literárias, cênicas, cinematográficas…) nas quais vemos a “obra dentro da obra”, cujo assunto se revela em sua própria estrutura formal. Alguns exemplos seriam O Jogo da Amarelinha (1963), de Julio Cortázar, e a As Meninas (1656), de Diego Velázquez. O que Fazer Daqui para Trás me convida a uma experiência de metalinguagem em relação ao espaço, ao tempo e ao fazer cênico. Seu assunto é deflagrado na própria operação formal de seus dispositivos. Partindo do método de Composição em Tempo Real desenvolvido por Fiadeiro junto a outras e outros colaboradores, os próprios dispositivos compositivos se mostram como assunto. A palavra questiona a palavra, o corpo questiona os limites do próprio corpo. A linguagem questiona a linguagem. Ficam evidentes as regras formais de composição: só pode haver uma pessoa por vez no palco. A primeira regra de jogo: uma/um intérprete sai, o palco fica vazio, entra a/o seguinte. Ao longo do tempo, a segunda regra entra em operação: o primeiro só sai do palco no momento em que o seguinte entra correndo e assume o microfone, interrompendo a fala do primeiro e assim por diante. Vemos assim que os cinco criadores estão conectados, tal como nos foi dito no primeiro texto que a primeira atriz colocou.

O corpo – o que há de mais presente que ele? (!) – instaura uma experiência abissal com o tempo. É como se a obra, por ansiar e perscrutar o tempo presente, precisasse ser tecida e “re-tecida” a cada instante, no tempo real de cada ação. Podemos entender que o próprio espaço-tempo presente se torna um dispositivo operativo da experiência. O que existe neste momento, neste “agora” do acontecimento? Ao final, conforme observamos um movimento preciso da luz, o que parece emergir é a ideia de experiência em si, a própria operação de tessitura do espaço-tempo presente da experiência cênica, sua presentidade, seu “agora”.