Sob a pele das palavras e das coisas
por Renan Ji
Em Tu Amarás, do grupo chileno Bonobo, médicos vestidos de branco, ou brancos vestidos de médico, buscam arrumar uma apresentação para um congresso de medicina. A tarefa se complica porque surge a demanda de investigar antes as próprias convicções que moveram seu trabalho de pesquisa entre os Amenitas. Chamados de índios em tempos remotos, os Amenitas são extraterrestres exilados na Terra e, desde sua chegada, convivem de maneira submissa e marginalizada na hierarquia social humana. O objetivo de desconstruir o preconceito contra os Amenitas acaba falhando já no projeto: os pesquisadores de fato conseguem demover as barreiras existentes entre oprimidos e opressores?
O trabalho de campo resultou num relatório que pouco reflete a verdadeira visão do grupo sobre seu objeto de pesquisa. Talvez a incongruência do projeto se instale de antemão a partir do fato de que um discurso muitas vezes pode mascarar aquilo que de fato se sente. Daí não surpreende a dificuldade, por parte de um dos médicos, de esquecer uma piada sobre coelhos quando se fala das condições sociais precárias dos Amenitas. Na mesma medida, quando discutem uma dinâmica que possa iniciar sua apresentação de forma descontraída, os médicos veem como um simples jogo de associação livre pode desencadear uma perigosa cadeia de palavras: de súbito, envergonhados, reconhecem que o fluxo de pensamento que começa com a palavra “Amenitas” inescapavelmente termina em “sexo”, “violência”, “cachorros”. Nesse caso, os Amenitas são de fato o “objeto” da pesquisa: manipulados por médicos brancos civilizados, donos da ciência – e das palavras que os diagnosticam.
Em Tu Amarás, há um debate sobre o uso das palavras e do discurso. A palavra “macaco”, por exemplo, pode se imbuir de falso rigor científico evolucionista, mas qualquer médico sabe, diante de uma pessoa negra, a carga de violência que se imprime nesse uso. Da mesma forma, na peça, os médicos de Tu Amarás não nos enganam quando afirmam que Amenitas são chamados de cachorros por sua fidelidade, bonomia e inocência. No jogo social, as palavras deslocam suas perspectivas e contextos, independentemente das melhores intenções manifestas. Lá no fundo, a verdade é que nós sabemos muito bem como usá-las, por mais que nossas “boas intenções” tentem mascarar isso. Basta um bom jogo de livre associação.
O que talvez nos angustie tanto nos dias de hoje é perceber como esse aspecto das palavras – sua mutabilidade e alta capacidade de deslocamento de contexto – assumem contornos dramáticos nas disputas sociais. A luta discursiva de hoje desnuda e critica feroz (e necessariamente) o sentido dos enunciados, e então eis que descobrimos como a suposta melhor plataforma política apenas replica a desigualdade social. No caso dos bem intencionados médicos de Tu Amarás, trata-se de reconhecer que um branco jamais sofrerá da ferida do racismo, da mesma maneira que eles jamais sentirão o corte do próprio bisturi; e por isso não podem pretender transpor a barreira que os separam de um Amenita, por mais que tentem se esgueirar pelas estruturas do racismo estrutural com projetos de saúde civilizatórios.
Contudo, me parece que, em Tu Amarás, o próprio veneno da linguagem possa ser um remédio. Se podemos denunciar, pelo uso das palavras, que médicos em missão humanitária podem ser o inimigo, podemos também pensar em como usar esse mesmo poder da palavra na direção de uma refiguração. Já que as palavras são mutáveis e intercambiáveis (Amenita – cachorro / médico – inimigo), devemos continuar o desdobramento contínuo tendo em vista a mesma luta por justiça e reparação social. Como se, da pele das coisas e das palavras, um talho rasgasse os invólucros e novas camadas surgissem. Diante do bisturi do inimigo, cortar esse mesmo inimigo para que, dos cortes mútuos, novos arranjos comuns possam surgir. Cortar por amor, como dirá um dos personagens da peça.
O limite desse cortar seria a mútua aniquilação? Na escalada do ódio que tanto conhecemos, talvez sim. Mas o próprio ensinamento Amenita – ser tão próximo e alienígena, voz nunca ouvida pelos médicos ao longo da peça – nos alerta: deve-se cortar como se cortasse a si mesmo. Com cuidado, abrir e expor peles e barreiras, até que o incômodo cesse. Ou, ainda, cultivar o meu corte e perceber até que ponto partilho da dor do outro.