A potência da solidão na multidão
por Nathalia Catharina Alves Oliveira
Aguardo o início de Multidão (Crowd), dirigido pela franco-austríaca Gisèle Vienne. Ao fundo do palco, recebendo apenas a luz indireta que vem da plateia, podemos ver os rastros de alguma cena ou evento. Indícios da passagem de alguma civilização por ali. Depois de algum tempo percebo que são os rastros de Multidão (Crowd). A música techno inicia e esses rastros reluzem sob a luz que começa a iluminar a cena. O techno é marcadamente um gênero musical urbano próprio a um contexto industrial e desenvolvido a partir de sintetizadores. Ninguém à vista. Uma mancha ao fundo do palco começa a se mover devagar e percebo que se trata de um corpo. Daqueles detritos surge um corpo. Humano. Em seguida os corpos de uma multidão de bailarinas e bailarinos também adentram a cena.
A montagem se constrói a partir de um processo de decupagem do movimento, nos revelando os próprios dispositivos de composição coreográfica marcada pela articulação precisa das partituras corporais. Esses corpos, tal como a música, também parecem ser operados por sintetizadores. A cinética em slow motion (câmera lenta) nos leva a um certo grau de estranhamento de uma cena trivial: uma festa ou balada entre jovens. Esse estranhamento de uma cena comum, em princípio reconhecível em praticamente qualquer território urbano, se faz, sobretudo, a partir do recurso da distensão do tempo dos movimentos. A tensão dos corpos e o tensionamento entre esses e a arquitetura do som e da luz constroem a contundência da corporeidade dramatúrgica de Multidão (Crowd). Os músculos dos bailarinos são como cordas de instrumentos orquestrados por uma maestrina, porém no lugar de som, produzem tensões. A virtuosística orquestração dessas tensões nos faz ver esses corpos quase como extra-humanos em um território distópico. Além de um sutil líquido vermelho que escorre, são as figuras solitárias que de vez em quando se destacam da multidão – rompendo com essa temporalidade distópica – que nos fazem lembrar de que ainda somos humanos.
A tensão do espaço entre os corpos traz à tona a angústia insondável que os habita. A latência de movimento – constante tensão muscular – parece instaurar a potência subversiva face a um esvaziamento das relações humanas e da solidão desses corpos em meio à multidão. A contradição entre o ritmo da música e dos deslocamentos nos leva a duvidar do “real” e do automatismo do comportamento humano. As pausas criam uma suspensão no tempo, nos conduzindo igualmente a estranhar esse “real”, nos convidando a ver a aparente trivialidade da cena festiva como um ritual trágico, revelador de uma ausência de contato humano, de um apagamento subjetivo construído por um sistema econômico e social calcado na fantasia do sucesso. Ao mesmo tempo que Multidão (Crowd) evidencia uma falência das relações de um ritual social europeu e ocidental, a precisão da movimentação e fisicalidade parece ser capaz de ressacralizar esses mesmos corpos, sendo a dança o próprio antídoto ritual contra uma apatia social sufocante. A crítica de Gisèle parece se ancorar na epicização desses corpos, desmontando sua movimentação pela alteração temporal e revelando as máscaras sociais que os compõem, como maquiagens definitivas pregadas ao rosto. Os corpos deflagram os códigos sociais sob os quais estão submetidos, sem espaço para o trágico, para a dor. A partir da dilatação temporal, tensionando ao limite a “musculatura de uma representação e atuação sociais”, a obra parece desconstruir sua própria representação.
Pausa. Suspensão. A continuidade do tempo histórico é interrompida: uma figura se destaca do bando imóvel e dança sua solidão.
Em alusão à perspectiva do líder indígena Ailton Krenak, poderia a explosão dessa tensão adiar o fim do mundo? Não seria sem razão, me parece, relembrarmos o trabalho da coreógrafa brasileira Lia Rodrigues com sua companhia da favela da Maré (RJ). Inspirado na obra a A Queda do Céu, do antropólogo Bruce Albert e do xamã Yanomami Davi Kopenawa, o espetáculo Para que o Céu Não Caia (apresentado em 2017 na 4ª edição da MITsp) também tem sua coreografia baseada em um jogo compositivo instaurado por um coro de bailarinos em cena e talvez, tal como os bailarinos de Multidão (Crowd), também dancem para que o céu não caia sobre nós.