Para que algo nos (Trans)forme
por Clóvis Domingos
Visibilizar as violências sofridas pelos corpos trans é uma das principais tônicas presentes em Burgerz, criação e performance de Travis Alabanza e direção de Sam Curtis Lindsay. Nesse espetáculo solo de alta voltagem política, presenciamos um rito de restauração pessoal e simbólica a partir de um ataque transfóbico real: enquanto atravessava a Ponte de Waterloo em Londres, durante o dia, Alabanza foi vítima de uma pessoa que jogou sobre ile (pronome não binário para substituir os pronomes pessoais “ela” ou “ele”) um hambúrguer. Tal acontecimento não gerou nenhum tipo de reação por parte dos transeuntes que o presenciaram, isto é, ninguém manifestou algum tipo de solidariedade diante da ofensa ocorrida. A cumplicidade silenciosa das pessoas e o ato repleto de ódio por parte do agressor acabaram por gerar ne artiste uma obsessão por hambúrgueres, e mais: como através deles seria possível abordar e refletir sobre questões como preconceito, classificações, lugares de privilégio e ausência de empatia.
Com fortes características de teatro documental, Burgerz se configura como um misto de conversa pública e show gastronômico ao vivo que conta com a efetiva participação do público, implicando-o de diferentes modos. Ainda que o espetáculo tenha no humor uma primeira porta de entrada, com o passar do tempo, sua dimensão dramática que faz com que reconheçamos num texto aparentemente leve, simples e poético, significativos e profundos atravessamentos de feridas sociais ainda abertas como gênero, negritude, dignidade trans e diferenças de classe. Ao convidar e escolher um homem cisgênero e branco da plateia para ajudá-le a preparar um hambúrguer, le artiste busca inverter a situação ocorrida e assim pode denunciar o desrespeito dirigido a pessoas trans nos mais variados espaços públicos.
A cenografia é composta de uma grande caixa como a das embalagens de sanduíche e que também pode ser lida como uma gaiola a aprisionar as sexualidades não normativas diante da regulação arbitrária dos gêneros, como se uma espécie de carne, não a de hambúrguer, mas a humana, fosse ali comprimida e sufocada por convenções. A abertura dessa caixa permite que uma cozinha seja instalada ao mesmo tempo que uma voz oprimida (a de Alabanza) possa ser escutada. Surgem então perguntas: “Quem veio primeiro: o hambúrguer ou a caixa? O homem ou a mulher? O gênero ou a violência”?, ao que le artiste responde: “Os dois são a mesma coisa. Mas como e por que enfiar as pessoas em apenas duas caixas”? Silêncio. Uma pergunta direta que não encontra uma resposta plausível, mas que revela que há pouca ou nenhuma diversidade e liberdade de escolha.
Na performance, o espaço da cozinha devotado para aproximar mundos e realidades tão distantes, quando não oponentes, é uma escolha poderosa por ser ali um lugar onde se transformam matérias, se prepara o alimento, se aquece o coração, se celebra o encontro. Ali se reúnem duas diferenças numa possibilidade de diálogo, escuta e troca. Ainda que le artista crie um ambiente acolhedor e simpático para seu interlocutor, as tensões não são dissipadas: le artiste chega a pontuar que sua vida inclusive corre sérios riscos por estar dividindo o mesmo espaço que um homem branco cisgênero e que ainda possui uma faca na mão quando corta as cebolas. “Você tem suas mãos em volta do meu pescoço”. E ainda arremata seu medo ao afirmar: “Eu aprendi isso com a história”. Sim, há mais de dois mil anos a cisgeneridade vem impondo suas normas aos corpos trans e dissidentes ao perpetuar estruturas que geram custosas condições de vida a essa comunidade como discriminações nos âmbitos familiares, escolares e de trabalho, além de imputar o apagamento dessas existências numa cadeia ininterrupta de violência.
Burgerz (trans)torna as normas cisgêneras e o próprio lugar da arte ao produzir uma “encontra” e uma “pedagogia da teatra” (aqui me refiro ao evento presente na atual programação da MITsp e que teve a curadoria de Dodi Tavares Borges Leal), pela convocação e necessidade urgente para que saiamos de nossas cascas protetoras e rompamos com a apatia que nos insensibiliza diante de dores que não são as nossas. Não será o nosso narcisismo e autocentramento os motivos pelos quais ainda precisamos arremessar sobre outres nossos hambúrgueres apodrecidos? Como nos curar coletivamente? A arte transativista e cidadã de Alabanza, num simples ato de preparar um hambúrguer, mostra que colaborativamente podemos edificar um mundo minimamente mais justo e que respeite as diferenças. Como na peça: “Podemos fazer mais para sermos melhores”.