O problema é seu e não meu

por Michele Rolim

Tenha Cuidado (Be Careful) @Guto Muniz

A expressão “tenha cuidado”, aparentemente inofensiva e que todas as mulheres já escutaram uma ou várias vezes ao longo de suas vidas, sugere num primeiro momento cautela, no entanto, ela esconde um outro discurso. A peça solo da artista indiana Mallika Taneja, apresentada no Itaú Cultural na 7ª MITsp, carrega em seu título essa expressão.

A artista pertence à Índia, considerado o pior país para se nascer mulher em todo o mundo. Falo “pertence” aqui como propriedade, porque o corpo das mulheres é considerado pertencente aos homens, ao estado e à religião. No país, não são raros os casos de aborto de fetos femininos, assim como os de assassinato de meninas recém-nascidas.

Mallika foi motivada a pensar esse trabalho a partir de casos como o de uma jovem fotógrafa de 23 anos que foi estuprada por cinco homens enquanto estava numa fábrica, trabalhando em uma reportagem com um colega em 2013, assim como o de outra mulher que também sofreu recentemente um estupro coletivo dentro de um ônibus, em Nova Délhi, o que levou milhares de indianos às ruas em protesto. São rostos entre muitos – reduzidos a números e estatísticas que apenas os invisibilizam.

Tais acontecimentos, infelizmente, poderiam ser considerados universais, pois servem para o Brasil de ontem e de hoje e, se prosseguirmos nestes rumos políticos, provavelmente também servirão para o Brasil dos sem futuro.

No palco, roupas finamente dobradas em prateleiras e cabideiros, e então um corpo nu, o de Mallika Taneja. Esse corpo parece realçar a nudez como algo estranho (e não natural, como deveria ser), revelando uma espécie de nudez incômoda ou inadequada. Durante cerca de cinco minutos, Malika possibilita à plateia um olhar voyeur, mas que subverte o prazeroso. Como se fosse num ato de protesto, ela encara a plateia apresentando seu corpo como algo inerente ao ser humano, que está ali presente. O problema não é como ela nos mostra o seu corpo; é como você o vê.

Essa inversão é basilar para a peça, pois ajuda a pensarmos o que exatamente as pessoas querem dizer para as mulheres quando dizem “ tenha cuidado”.

Podemos ler: “A responsabilidade de se proteger é sua”. Ou, como dito por Mallika na peça, “alguém tem que assumir a responsabilidade pela responsabilidade” e coube às mulheres esse papel. Os ditos “conselhos” de voltar antes de anoitecer para casa, de evitar andar sozinha, de fechar as pernas quando se senta, e de abaixar a cabeça para evitar olhares escondem o subtexto de uma sociedade patriarcal. Reconhecer que somos todxs machistas, que fazemos parte de uma sociedade estruturalmente machista, é uma condição para a desconstrução dessa estrutura.

Apostando no sarcasmo e no jogo com a plateia, a atriz pouco a pouco começa a vestir roupas para se “proteger” até ser invisibilizada literalmente pelas camadas de roupas. Mas essas camadas são metáforas de uma condição da mulher que o tempo inteiro perde o direito de ir e vir, de desejar, de ser protagonista do seu próprio corpo e de sua história, ou seja, a vestimenta sufoca sua subjetividade e aquilo que surge no início da peça de maneira contundente e simples: o seu corpo. A mulher reivindica um lugar na sociedade como sujeitA ativa, mas os tecidos – finos, brilhantes – adornam e impedem que isso aconteça.

O sarcasmo é utilizado na peça como forma de aproximação dialógica com a plateia. Mallika convoca a participação dos espectadores quando os instiga – “You can talk!” (Vocês podem falar!). A artista integra coletivos como Women Walk at Midnight, Women for Theatre e Sex Chat Roo. Ela realiza performances que extrapolam essa ideia de palco convencional, demandando um tipo de resposta diferente de suas plateias. Elas podem falar. Uma dessas performances acontece dentro da 7ª MITsp, dia 7 de março. Mallika convida todas as mulheres a se unirem à experiência conjunta de andar por São Paulo durante a noite, a partir das 23h. Nessa noite, Mallika e tantas outras mulheres poderão ocupar o espaço público, protegidas pelas próprias mulheres e não vestidas à força do patriarcal. Nessa noite, Mallika volta pra casa depois das 18h.