O fio da lâmina da memória

por Laís Machado

Sábado Descontraído @Guto Muniz

É impossível ouvir falar sobre o genocídio de povos negros africanos e afrodiaspóricos, sendo negra brasileira, sem estabelecer, de imediato, conexões com as bases que estruturam esta Nação. Esta aproximação é estabelecida tanto pela sanguinolência de todos esses conflitos, pelos números geralmente perturbadores, pelas lacunas deixadas nas informações oficiais, quanto pelo apagamento de sujeitos ao transformá-los em estatísticas incapazes de afetar. Para além do período escravocrata, a história brasileira é banhada de sangue negro e indígena: as práticas eugenistas, a relação de morte sistemática estabelecida entre a polícia militar e as comunidades periféricas no Brasil.

Sábado Descontraído (Samedi Détente) é o espetáculo através do qual Dorothée Munyaneza põe em xeque a narrativa oficial sobre o genocídio ocorrido em Ruanda em 1994, transformando em sujeitos as estatísticas do massacre. Revisitando as memórias grafadas em seu corpo desde o final de sua infância que foi antecipada pelo confronto.

Em 6 de abril de 1994, se iniciou o genocídio dos Tutsi em Ruanda, que durou três meses e matou quase um milhão de pessoas nesse período. Essa guerra foi “oficialmente” atribuída a uma disputa entre grupos étnicos de um país que foi invadido e explorado por potências europeias, que nunca assumiram sua interferência e que abandonaram o território durante o massacre. Não apenas para preservar a vida dos seus, mas para garantir o extermínio do outro.

Dorothée compartilha suas memórias. A relação com a perda de amigos, familiares e rotina, com a falta, com o retorno, com a saudade, com o medo, com a morte. E como todo processo de revisitação de memórias, as recria e as atualiza e compõe músicas, imagens e partituras coreográficas a partir do diálogo com elas. O palco é dividido com Nadia Beugré, que com o seu corpo é capaz de materializar a paisagem da narrativa, e Kamal Hamadache que opera e produz sonoridades ao vivo.

Alguns elementos ganham destaque em todo o acontecimento, mudando sua posição de importância na medida em que a narrativa se desenvolve. A mesa – um espaço de comunhão e reunião familiar – se transforma em abrigo e proteção. A rádio, que sua família escutava, projetada através de uma conexão forjada com o facão, instrumento que se tornou uma das armas mais presentes no genocídio, com a qual membros ou não das milícias matavam uns aos outros. E a lona plástica que tanto embalava os cadáveres, como servia de cama no sereno para ver satélites vestidos de estrelas.

Sons do facão em contato com o metal e com a madeira são ressignificados e se transformam em instrumentos musicais. Bem como passos pesados sobre o tablado e sobre a mesa, além de ruídos disparados em off. Sons que, isoladamente, podem ser atribuídos ao conflito e juntos são transformados em música. E, apesar da dureza do que dizem, dialogam com a beleza. O espetáculo não parece ter interesse em criar uma ilusão que transporte o público para aquele recorte temporal em Ruanda,  nem assumir o papel de explicar para o mundo o jogo político que afiou o facão, mas nos deslocar para dentro dos poros de Dorothée. Para o que, daquilo tudo, ficou registrado em seu DNA. Seu corpo e o que ele agencia é nossa lente, nosso filtro. E essa é a porta de entrada para o público. Essa é a ferramenta que nos permite vislumbrar a estrutura como um todo. Pois é difícil ignorar alguém que te desafia e te atravessa. Não com o facão que segura, mas com a voz que te corta.

Como viver e reconstruir-se depois de ter o chão sob os seus pés arrancados e estruturas de afeto ruídas irruptivamente pela barbárie? Como fazer poesia depois da experiência da guerra? Como retornar ao território que se configura como o ponto zero da sua própria destruição e se reconectar com o restou? Como se colocar à serviço das vozes não escutadas, incluindo a sombra de si mesma? Em Sábado Descontraído, Dorotheé e Nadia dançam entre essas perguntas e chamam à responsabilidade a audiência, nos obrigando a nos confrontarmos com a nossa própria valoração destas vidas: Onde estávamos em abril de 1994?