O desnudamento ensurdecedor de Mallika Taneja

por Nathalia Catharina Alves Oliveira

Tenha Cuidado (Be Careful) @Guto Muniz

A linha de ônibus 623 de Nova Délhi, na Índia, sai de Shahdara Terminal e vai até Bharti Nagar. O ônibus 623 é citado pela artista Mallika Taneja em Tenha Cuidado (Be Careful), apresentado na 7ª edição da MITsp. A performer nos diz que, sendo mulher, deve-se ter cuidado sobre como vestir-se, dado que o ônibus sai de uma área perigosa de Nova Délhi, cidade residência de Mallika. Seu pai lhe dizia para tomar cuidado, assim como sua mãe, sua irmã, seu irmão, o vizinho de cima, o vizinho de baixo, a vizinha da frente. Somos muitas e muitos na plateia. Possivelmente muitas de nós, assim como Mallika, também já ouvimos de nossos parentes para termos cuidado, para voltar antes de anoitecer para casa, para fechar os joelhos, para abaixar a cabeça, para não tomar o ônibus sozinha. Fomos ensinadas a ter medo e a nos proteger.

O começo: inúmeras cores em tecidos pendurados. Imediatamente me vem a imagem de um campo amplo na Índia, repleto de tinas de tingimento de tecido. Eu não estive na Índia. Essa é apenas uma imagem impregnada em minha memória por conta dos filmes que vi. Black-out. Luz. Mallika Taneja está em cena. As cores que antes ocupavam toda a minha atenção se tornam uma paisagem distante e sou totalmente tomada pelas camadas narrativas e cores que nascem do silêncio e do olhar de Mallika. A artista passa um longuíssimo tempo ali, em pausa, em silêncio, nos olhando. Aos poucos, me sinto chamada a contemplar a cena. É como se seu corpo fosse se tornando transparente e, após certo tempo do silêncio total, posso escutar inúmeros gritos e vozes que saem do corpo de Mallika. Posso ver inúmeros rostos de tantas, tantas outras mulheres que são convocadas na plenitude da presença de Taneja. Lembro aqui que contemplar não supõe uma passividade, mas, antes, é uma ação de observar uma realidade natural como um templo, ou ainda um possível olhar no tempo que nos permite ler o que nunca antes fora escrito. Nesse sentido, sou levada a ver o corpo de Mallika como um templo, e aquilo que não pôde ser dito e escrito por tantas mulheres silenciadas se inscreve no corpo dessa mulher em cena. As palavras dessas mulheres que não estão nos livros de história emergem do silêncio ensurdecedor de Mallika. Seu corpo é assim como um templo que abriga outros tantos corpos femininos.

Embora tenhamos uma intensa profusão de obras que tratam sobre o contexto opressor ao corpo feminino, sobre a violência diária e avassaladora que nos atravessa, não é demasia insistir e nos lembrar disso diuturnamente. Entre outras narrativas, a pesquisa de Mallika parte do estupro coletivo sofrido por uma fotojornalista indiana em 2013 em Mumbai. Infelizmente, este é um entre inúmeros outros casos, como por exemplo o da estudante indiana de fisioterapia, também vítima de um estupro coletivo em um ônibus, em 16 de dezembro de 2019, em Nova Délhi. A estudante morre 13 dias depois por falência múltipla dos órgãos. Uma vez mais, não creio que seja redundante relembrar o contexto de barbárie cotidiana que sofremos. Olhar constantemente para essa absurdidade é uma maneira de não nos abatermos face ao terror, de resistir à normatização da violência moral e física contra a mulher que marca, de forma ainda mais assoladora, países como a Índia e o Brasil.

Mallika sorri e fala diretamente com a plateia: You can talk! (Vocês podem falar!). Diretamente proporcional à violência é a necessidade de desaparecer diante do olhar do outro. Isso significa que quanto mais normatizada é a violência contra a mulher em países como Índia e como o Brasil, igualmente normatizado está o fato de que devemos ter cuidado. Sendo assim, o corpo da mulher deixa de ser um “em si” – um templo – para ser a partir do outro, a partir da violência, objetificando-se para proteger-se. Nosso corpo passa assim a existir como reação à barbárie e não como ação, não como templo. Mallika está vestida de medo.

O Brasil é considerado o quinto país com maior índice de feminicídios no mundo. Chegará o dia em que não precisaremos elencar, comparar e indexar esses números brutais e atrozes. Afinal, nem uma única mulher pode ser morta, em qualquer país que seja. E então poderemos contemplar novamente todas as cores da nudez de Mallika. Todas as cores de todas nós, mulheres.