O corpo ciborgue não será cis-burguês

por Dodi Tavares Borges Leal

Burgerz @Nereu Jr

Travis Alabanza, em Burgerz, nos convida a uma imersão radical aos modos de se fazer gente. Debochada e raivosa. É assim que vemos uma chefe de cozinha conduzir a narrativa cênica que tem como ponto de partida um dia de abril de 2016 quando, ao atravessar a Waterloo Bridge, em Londres, foi atacada com um hambúrguer enquanto alguém gritava tranny – TRAVECO! Mais de cem pessoas presenciaram a situação e ninguém reagiu para apoiar. Entre quem atira e quem é atacada com hambúrguer é fácil notar quem é ciborgue e quem é cis-burguês?

A ruptura com os códigos racionalizantes, coloniais e brancos de corpo não pode se furtar da fundamental subversão dos dispositivos cisgêneros de corporalidade dominantes. Desde que Donna Haraway apresentou ao mundo a brilhante obra Manifesto Ciborgue no último quartil do século XX, tornou-se ainda mais evidente que as hibridizações e limites da espécie humana estão imbricadas de aspectos éticos e estéticos complexos. No entanto, a elitização do saber acadêmico, por onde tem passado majoritariamente a repercussão desse debate, leva a uma figuração da noção de ciborgue carregada de matizes tóxicos da cisgeneridade e da burguesia. E, não! O corpo ciborgue não será cis nem burguês.

Antes de fazer o hambúrguer, é preciso decidir em que caixa você o servirá. Aliás, uma vez que as ciências biológicas já resolveram a questão — quem veio primeiro: o ovo ou a galinha? — o espetáculo interroga: quem veio primeiro: o hambúrguer ou a embalagem? A peça é uma voraz crítica ao cardapialismo das siglas ligadas às dissidências sexuais e desobediências de gênero (LGBT, LGBTQIA+, LGB…), todas elas fracassadas pois fadadas à cisnormatividade, à monossexualidade e à escala. Estas tais letrinhas, quando justapostas, enganam pois carregam consigo a ideia de que ou você rompe com as hegemonias sexuais ou rompe com as hegemonias de gênero. Se no cenário da peça vemos um contêiner cheio de caixas, não é porque o food truck comercializa nossas corpas literalmente, mas porque é preciso denunciar que fazemos com nossas pulsões de vida o mesmo que não abrimos mão de fazer com nossa alimentação industrializada: arrumamos em caixinhas. E Travis nos diz: não encaixota a xota! 

Burgerz é uma crítica à burguesia cisbranca. A versão brasileira mais nítida desta metáfora não são as caixinhas, mas sim os coxinhas. Jogadora de cena, Travis arranca o conforto do peito de um homem cisbranco que convida ao palco para trabalhar pra ile. E pergunta: desde a confiança que os dois mil anos de privilégios te proporcionou, você sabe como fazer um hambúrguer? Quando a trava preta manda ele pôr queijo pra ile, já não se faz um cheeseburguer, mas é ele mesmo que se passa a comer: o cis-burguês. E bota mais tempero porque ile tá com sangue no zóio. A peça abarca a reflexão sobre a precarização do trabalho em linha de montagem. Enquanto um outro ingrediente vem para se montar o prato, ile propõe falar sobre o racismo. O macho cisgênero frágil vai cortar cebola? Ile então pede pra falar sobre o choro dele. E pergunta: — O que veio primeiro? O gênero ou a violência? Ele hesita em responder. Ile arremata: não se dê o trabalho de responder; gênero e violência são a mesma coisa. Uma fita adesiva rosa é então amarrada em seus peitos, com dois pãezinhos feitos de teta. O corpo ciborgue só pode ser transgênero e inter-espécie. A antropofagia cis-oswaldiana do século XX não nos dá mais de comer.

Destaque especial para Maia de Paiva, performer e tradutora que mais do que mediar o improviso de cena que versa entre as línguas portuguesa e inglesa, ela é abusada e pilar para o coió que Travis se empodera a dar. O texto, de autoria de Travis, contém uma reflexão freiriana fundamental: a liberdade dos opressores não depende da nossa liberdade. Mas eles só serão livres quando nós formos livres. Se há alguém, ainda assim, que quisesse atacar com um hambúrguer, a luz impediria: um black out preparado para interromper atos futuros de violação dos corpos.

Burgerz encerra a sétima edição da mostra, com o maior número de participação de pessoas trans de sua história. Como legado de 2020, ficamos com a expectativa para os próximos anos de ainda mais obras e atuações de pessoas trans na MITsp – Mostra Internacional de Travestis.