Farm Fatale e o esgotamento da imagem

por Wellington Júnior

Farm Fatale @Guto Muniz

 

“Nossa tarefa é memorizar essa terra temporária e degradada tão profunda e apaixonadamente que sua natureza é invisivelmente ressuscitada em nós. Nós somos as abelhas do invisível”. Rainer Maria Rilke

O encenador francês Philippe Quesne investiga em Farm Fatale as fronteiras entre os humanos e os fantoches, entre os camponeses e os espantalhos. Temos em cena cinco figuras mascaradas que aparecem e pousam em um fundo de tela branca imaculada. A peça então mergulha o espectador em um universo onde tudo evoca uma fazenda: fardos de palha, canto de galos, sons de pássaros e vários implementos agrícolas. O pequeno grupo de espantalhos vive nesse mundo com uma estação de rádio independente (canta, toca música, inventa slogans e às vezes se entrega à filosofia). Com vozes mascaradas e distorcidas, essas figuras contemplativas seguem ouvindo as pulsações do planeta e podendo não serem tão estranhos para nós. Porque esses homens-espantalhos e mulher-espantalha aspiram a um mundo melhor e são, acima de tudo, sonhadores, poetas, ativistas.

É através da escritura das imagens espaciais que o espetáculo busca desvelar o mundo melancólico dessas figuras. A encenação teatral opta por determinados tipos de relações espaciais entre as personagens/atores a partir de suas alturas e contorções corporais. Cada composição cênica possui um código imagético implícito, e a maneira de visualizá-lo a partir das relações espaciais e rítmicas entre os atores e os espectadores influi na leitura do texto cênico desenvolvido por Quesne. O interesse de Farm Fatale é na contemplação do momento presente, assim como acontece na apreciação de um retrato, ou de uma paisagem, um quadro ou natureza-morta. O espectador cria uma relação a partir da percepção da superfície das coisas, do rigor que a forma imprime nos objetos de cena.

O espetáculo é elaborado em um espaço cênico frontal (a cenografia é do próprio Philippe Quesne), onde estão dispostos diversos objetos (de instrumentos musicais a ferramentas mecânicas), organizados de forma que lembrem uma fazenda abandonada. Ao fundo do palco se localiza um grande tecido branco que emoldura o vazio do quadro. Com essa estrutura paisagística da encenação, a significação dos objetos não é reduzida a um único sentido ou nível de apreensão. O mesmo objeto é muitas vezes utilitário, simbólico, lúdico, conforme os momentos da representação e, sobretudo, conforme a perspectiva da apreensão estética do campo de contemplação. Nesse caso, o objeto estimula o público a realizar novas configurações da imagem.

Precisamos de tempo e liberdade para penetrar nas imagens no teatro. A lentidão é a condição para a meditação e a contemplação possíveis. Essa lentidão provocativa, mas que afia os sentidos, se não nos fizer adormecer, é acompanhada de um vazio que interroga uma sensibilidade amortecida pela abundância quotidiana dos signos visuais. Esse processo temporal com as imagens nos é negado no espetáculo Farm Fatale. Assim a escritura de Quesne se fecha em uma necessidade de avançar com as imagens sem dar o real tempo para sua contemplação.

O olhar na encenação de Philippe Quesne é, enfim, o olhar daquele que, muito concretamente, visualiza o texto. A escritura dramatúrgica neste espetáculo busca encontrar, efetivamente, um novo estatuto cênico, o do texto-imagem. Essa estratégia de visibilidade e de enquadramento de palavras tem uma função ao mesmo tempo de criar narrativas visuais potentes e de estabelecer palavras que sugerem imagens.

A dramaturgia de Martin Valdés-Stauber acaba por ilustrar as imagens. Seu texto não estaria em busca de imagens capazes de sintetizar, de aprofundar, de transpassar, de contradizer a escritura cênica. Temos uma escritura dramatúrgica que não compreende a cena por seus ritmos, cores, movimentos. Então a palavra não se entrelaça com as imagens e os sons.  Farm Fatale com esses procedimentos acaba por esgotar as possibilidades da imagem e seu caráter visionário e dialético.