Eu estou aqui porque vocês estiveram lá
por Daniel Toledo
No decorrer dos mais de 500 anos da violenta história colonial que marca o eurocêntrico sistema-mundo em que ainda hoje vivemos, o Reino Unido tem sido, decerto, um de seus maiores beneficiários, seja no que se refere a aspectos econômicos, políticos ou culturais. Em certo momento dessa história, inclusive, a partir de sucessivas invasões a territórios situados em todos os demais continentes, o Império Britânico correspondeu a um quarto da superfície da Terra. Curiosamente, no entanto, a partir de uma racionalidade que nem sempre faz sentido, os detentores de passaportes britânicos são ainda hoje bem recebidos em toda parte, enquanto os donos de outros documentos, vinculados às nações historicamente colonizadas, dentre as quais Brasil, Congo e Uganda, enfrentam dificuldades e desconfianças quando decidem ultrapassar as próprias fronteiras. Mas que riscos ofereceria um humilde imigrante, quando comparados àqueles proporcionados por um ambicioso invasor?
Essa é apenas uma das questões que parecem atravessar o espetáculo O Pedido (The Claim), criado a partir de uma colaboração entre os artistas britânicos Mark Maughan e Tim Cowbury, após uma pesquisa dramatúrgica que envolveu numerosas entrevistas com imigrantes que, por motivações como a pobreza, a violência, a instabilidade política e a guerra civil, buscaram asilo sob as asas do suposto bem-estar social oferecido pela mitificada terra da rainha. Tendo como ponto de partida o encontro entre um exilado congolês, que mais adiante saberemos se chamar Serge, e dois oficiais da imigração britânica, dos quais jamais saberemos os nomes, a obra se estrutura a partir de uma narrativa linear baseada em diálogos rápidos que revelam o absurdo das mediações institucionais e chamam atenção à falta de escuta dos habitantes da metrópole em relação àqueles que vêm da colônia.
Sem que se apague a luz de serviço, e como se estivéssemos, de fato, em uma sala de imigração, O Pedido tem início com a cautelosa entrada de um homem no teatro. Usando jeans, camiseta branca e casaco de nylon, o homem – negro – não vem das coxias, mas de uma cadeira situada na plateia. Hesitante, ele se aproxima do palco, como quem procura entre os presentes algum rosto que inspire confiança e lhe autorize o próximo passo. Quem seríamos nós, afinal, enquanto estamos na plateia? Seríamos, porventura, os próximos da fila de imigração, desconfortavelmente aguardando a nossa vez? Ou então, quem sabe, outros funcionários da mesma instituição, igualmente aflitos pela resolução de um conflito ao mesmo tempo histórico, humanitário e institucional?
A partir de então, o que se apresenta é uma situação de evidente desinteresse pelo outro e suas histórias, supostamente já conhecidas e contadas segundo relatórios que desprezam a realidade concreta e somente confirmam os interesses da instituição. Ao Congo, são associados elefantes, milícias e uma imagem supostamente selvagem, francamente congelada no tempo. Ao imigrante congolês, uma vida de criminalidade e abusos, como se a qualquer momento uma arma pudesse surgir de um dos bolsos do seu casaco de nylon. Mas quem, afinal, detém as armas? Quem as produz e lucra com isso? Quando se fala, por exemplo, em um suposto “incidente com arma”, a discussão se referiria mesmo à infância de Serge, vivida em meio à luta anti-colonial em seu país ou, numa perspectiva histórica e mais ampla, às próprias invasões europeias sobre os territórios que visava explorar?
À medida em que se acumulam, em cena, sucessivos mal-entendidos e traduções equivocadas, a obra abre caminho a múltiplas ambiguidades e metáforas entre a situação concreta vivida pelos personagens e a violenta história colonial repetida em diferentes partes do globo. “Desculpe, estou fazendo isso de novo”, diz, a certa altura, o mais tagarela dos oficiais, sem nunca nos convencer com ações, em vez de palavras, sobre a sinceridade do seu pedido de perdão. Mais adiante, Serge nos lembra que os perigos do Congo não se relacionam aos animais, mas às pessoas, referindo-se provavelmente aos invasores que jamais deixaram a sua terra. E ainda que aos oficiais britânicos pareça difícil de entender, talvez seja, por fim, natural – e também muito justo – que os “problemas do mundo”, tais quais a pobreza e até mesmo a violência, batam à porta daqueles que historicamente os provocaram.