Escuta enganosa
por Guilherme Diniz
O Pedido (The Claim), espetáculo britânico resultante de uma inédita parceria entre o diretor Mark Maughan e o dramaturgo Tim Cowbury, discute uma das mais pungentes questões de nossa geopolítica contemporânea, isto é: o sofrimento vivido por incontáveis refugiados mundo a fora, lutando por condições de vida minimamente dignas em países que não desejam recebê-los. Serge, imigrante congolês, interpretado por Tonderai Munyevu, é interrogado por oficiais de imigração britânica em uma relação marcada por incompreensões e violências.
O diálogo, em O Pedido, é um escorregadio campo de batalha. As ambiguidades e dubiedades se reproduzem em um texto profundamente oblíquo. Inicialmente o desenho dramatúrgico se assemelha aos recursos textuais do teatro do absurdo, em que a comunicação é, por excelência, falha, impotente e ridiculamente convencional. As passagens cômicas revelam os desencontros comunicacionais e os quiproquós nascidos de uma conversa repleta de ruídos. Contudo, a agressão adquire mais tônus à medida que a imagem de Serge é perversamente distorcida. A finíssima ironia pouco a pouco torna-se mais ácida, viperina até inundar o diálogo de tiradas severamente capciosas, nas quais a palavras são armadilhas. O diálogo finalmente se transformará em um violento interrogatório no qual a comunicação não se efetiva. O verdadeiro mal-entendido reside na violência simbólica, na estigmatização ferina que não apenas reduz a humanidade alheia, mas tenta fixar sua identidade.
Há sobre aquele corpo estrangeiro e negro uma presunção de culpa imposta pela ótica racista. O diálogo apenas visa formalizar e/ou explicar a culpabilidade que supostamente ele já possui. A linguagem ruidosa sutilmente opera um processo de criminalização do outro. Assim como na brilhante série Olhos que Condenam, o interrogatório esconde uma manipulação a partir da fragilidade e do medo do outro. A perspectiva racista dos oficiais encara tudo o que Serge faz como índice de um crime ou de uma ameaça iminente. Uma palavra, um olhar ou um gesto executado pelo refugiado são tomados como são pistas (ou até mesmo evidências) de sua indiscutível culpa. Desta maneira, a conversa não pretende efetivamente aproximar ou estreitar relações para gerar um espaço comum. Pelo contrário, o diálogo almeja somente encontrar a suposta prova cabal de um crime, isto é, provar, a ameaça de um sujeito, vítima de grosseiras estereotipias. Como afirma o antropólogo Kabengele Munanga, o racismo é um crime perfeito, pois encontra justificativas e maneiras de se manifestar sutilmente, ocultando-se nas miudezas, nos pequenos detalhes que violentam uma vida. No momento em que um oficial é obrigado a traduzir, para sua colega de trabalho, a fala de Serge, assistimos não apenas à falência de uma comunicação humanizada, mas à criação de uma narrativa distorcida sobre aquele sujeito acuado. Aí vê-se nitidamente a postura colonial que a um só tempo estabelece uma hierarquia entre sujeitos e transforma o outro em um bárbaro animalesco e incompreensível.
A iluminação em O Pedido acentua a tensão entre os corpos presentes por meio da mudança de cor, saturando os tons azuis. Nesses momentos, a atmosfera é ainda mais densa, evidenciando a aflição em um contexto no qual qualquer movimento em falso pode desencadear uma reação violenta. Serge está solitário em um campo minado. A criação de uma imagem ameaçadora e perniciosa dos corpos dissidentes, colonizados e racializados atende a uma política que mobiliza o medo para justificar a exclusão e o aniquilamento do outro. Um projeto institucional, enfim, incapaz de produzir ou considerar o bem comum a partir da pluralidade de subjetividades, origens e culturas.
Ao longo de toda a peça, Serge pede aos oficiais um copo de água para saciar sua sede, porém os estereótipos projetados sobre o corpo subalternizado são tão ferozes que impedem os oficiais de escutarem as necessidades fundamentais e urgentes de um sujeito a procura de conforto. Após incontáveis agressões, eles dão ao imigrante um copo d’água, mas assim como ele terminamos a peça com a garganta seca. Diante de uma árida comunicação sustentada pela recusa ao outro, e diante do deserto racista e colonial que insiste em assassinar nossos corpos negros, historicamente subalternizados, eu também tenho sede.