Em busca de outros refúgios
por Daniel Toledo
Construído há mais de dois milênios, a partir do uso de materiais violentamente retirados das profundezas da terra, o Partenon de Atenas talvez seja um dos monumentos mais conhecidos do mundo, até hoje associado aos tempos áureos da civilização grega, à fundação da democracia e às bases da dita cultura ocidental. Passados tantos séculos, entretanto, o nobre edifício originalmente feito de mármore, com detalhes em ouro e marfim, se encontra já há algum tempo em ruínas, ocasionadas tanto por ações da natureza quanto por saques do aparentemente eterno Império Britânico, que ainda hoje ostenta peças do Partenon em um de seus principais museus nacionais.
Carregado, portanto, de ampla simbologia, o Partenon de Atenas serve como referência para a obra Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe (Contes Immoraux – Partie 1: Maison Mère), realizada pela artista francesa Phia Ménard. Encomendado pela Documenta de Kassel de 2017, o hercúleo trabalho surge a partir da seguinte questão: “O que podemos aprender com Atenas?”. Referindo-se tanto à capital grega, àquela altura já convertida em periferia europeia e eixo de entrada de milhares de refugiados afegãos, iraquianos e sírios, quanto também à deusa que supostamente protege a cidade. A obra não se apresenta propriamente como espetáculo, mas a partir da performatividade de uma ação real: construir, em pouco mais de uma hora, sem truques ou grandes efeitos, uma réplica de papelão do notório edifício ateniense.
Ao entrarmos no teatro, nos deparamos com uma heroína punk mascarada que observa atentamente a chegada do público, como se fôssemos, quem sabe, refugiados em busca de abrigo. Ela está sob luz fixa, diante de um grande retângulo de papelão recortado em pedaços, perto ainda de algumas hastes-lanças dispostas em um vaso situado no fundo do palco. Além desses elementos, surgem mais adiante alguns rolos de fita crepe e uma serra elétrica que emprestará alguma dramaticidade à construção. Parecendo cansada e sem paciência, a heroína demonstra certa falta de modos, além de pouco entusiasmo em relação à nossa chegada e à atividade que está prestes a iniciar. Sem palavras, fechada em si e no imperativo da construção, toma a primeira lança nas mãos e se entrega à ação, com passos ritmados e entremeados por uma trilha sutil que remete a ecos e vazios. Percebemos, aos poucos, que ela parece já conhecer o projeto, ainda que por vezes enfrente imprevistos e recorra a improvisos.
Com a ajuda de uma haste-lança, recolhe os primeiros fragmentos do retângulo de papelão e coloca-os sobre os ombros, fazendo lembrar uma catadora de papelão que facilmente poderíamos ver em alguma rua brasileira. A cada ida e vinda, cria diferentes imagens de um corpo nômade, migrante e andarilho, instituindo ainda um território de entulho para onde vão os resíduos da construção que em primeiro plano se dá. Nossa heroína punk corta a fita com a boca, fixa as peças sem apuro, cuidado ou capricho. Por vezes desaparece atrás ou embaixo da estrutura, fazendo da casa trincheira, muro, fronteira e esconderijo. Não há tempo para hesitação, mas nitidamente alguma desconfiança sobre a eficácia do projeto e a estabilidade da estrutura que poderia, quem sabe, nos abrigar.
Ao passo do tempo, a precariedade da construção e dos procedimentos provoca riso e cumplicidade da plateia, por ventura fazendo lembrar de algum embrulho improvisado, de alguma gambiarra inventada. O que impressiona, em cena, não são propriamente os procedimentos, bastante simples, mas talvez a escala da ação, chamando atenção ao atrevimento do gesto humano sobre um mundo que em muito nos ultrapassa. Como de costume, a estrutura humanamente construída se revela ao mesmo tempo prisão e proteção, jaula e monumento.
Quando a natureza age, entretanto, somos convocados a refletir sobre a fragilidade e as contradições de todo o edifício ocidental, quem sabe também sobre a derrocada da democracia, da racionalidade eurocentrada, do projeto civilizatório capitalista-colonialista-patrimonialista-patriarcal e de uma visão que enxerga a natureza como mero canteiro de obras, entulho, construções e escavações. Um tanto perplexa e quase patética, é como andarilha, ao apagar das luzes, que deixa o palco nossa fragilizada heroína ocidental.