É hora de dizer tchau?

por Renan Ji

Farm Fatale @Guto Muniz

O glifosato dizimou a vida rural. Não há mais fazendeiros, animais, plantas e pessoas. Restaram espantalhos que vivem das ruínas e das lembranças de uma sociedade de outrora. Arremedos de gente, eles buscam reconstruir a natureza (que natureza?) a partir de ovos mágicos e coloridos que darão vida novamente àquelas paisagens.

Farm Fatale estabelece os contornos de uma fábula rural. No entanto, seus sentidos são moralmente mais restritos do que leões, ratos, tartarugas e lebres. A mensagem ambientalista desses seres pós-apocalípticos é clara: com suas vozes distorcidas e dicção que falseia uma intencionalidade infantil, os espantalhos nos apontam o dedo como a ativista Greta Thunberg, e não há como desviar o olhar do protesto simples e direto. Farm fatale é o nosso futuro e o que estamos fazendo diante disso?

Parece haver, contudo, uma ironia subjacente na comicidade fácil e palatável da peça do francês Philippe Quesne e do grupo alemão Münchner Kammerspiel. Se aceitarmos inocentemente a suposta proposição de Farm Fatale, estaremos diante de um Teletubbies pós-hecatombe, com bonecos animados que criam uma realidade falseada e proposições talvez infrutíferas, infantilizadas, sonhadoras. O programa Teletubbies já foi acusado de distorcer o desenvolvimento das crianças, porque seus personagens falavam e balbuciavam como bebês. Na escala do infantil ao “infantilóide”, onde se encontra a representação de Farm Fatale? Nesse sentido, a questão de fundo parece ser o quanto essa alegoria ambiental se torna somente um exercício de boa consciência e nada mais.

Em outras palavras, trata-se do exercício de gritar “abaixo o glifosato” quando tudo o mais já virou uma grande lona branca e estéril, com sons gravados de pássaros e bolos de feno cenográficos. O uso social e a súbita vida fabular que ganham os espantalhos fazem parte dessa ironia ambiental. Criados para espantar pássaros, são os próprios espantalhos que, em meio ao desastre, guardam a memória do barulho dos animais que antes repeliam. Logo, qual natureza estão defendendo ou tentando recuperar? Na primeira mesa do Seminário de Perspectivas Anticoloniais, da programação da MITsp, Ailton Krenak afirma que a sustentabilidade é um mito. Se somos formatados para assustar a natureza, como podemos lutar para salvá-la?

Bem no centro do palco, lemos uma placa com a palavra “umleitung” (desvio). Tendo à frente o que se desenha em Farm Fatale, penso nas rotas alternativas possíveis geradas a partir deste desvio que se coloca no centro dessa dramaturgia. Devemos levar conosco a “mensagem” nos nossos corações de espantalho? Supondo que sim, basta lembrar que precisamos estar “tous ensemble” (todos juntos), como nos ensina Pécuchet, espantalho que nos remete ao personagem idealista do escritor Flaubert. A pauta que me parece realmente urgente surge a posteriori, quando pensamos como se dá esse “todos juntos”. Será que é com “tous ensemble”, em francês, ao redor de ovos coloridos?

Na parte final do espetáculo, os espantalhos vislumbram o vizinho que retoma as atividades da sua fazenda com práticas predatórias de produção. Pécuchet defende que Buddy, Sissi e os demais amiguinhos se juntem para matá-lo. Mas resolvem no final fazer um rap ambientalista. O poder contestador do rap é moído pelo mercado dos programas infantis. Teletubbies, bebês, raios de sol e espantalhos bonzinhos, com suas máscaras e vozes eletrônicas, se equilibram entre a destruição global do planeta e o produto educativo das prateleiras da seção infantil.

Tanto Tinky Winky quanto o Pécuchet de Farm Fatale chegam ao momento de dizer tchau. Farm Fatale dá adeus à sustentabilidade como produto, apresentando a necessidade de um desvio de rota. Fica a questão, no entanto, de quais caminhos a seguir para além do riso e dos espantalhos fofos, que nos garantem boa consciência ambiental por detectarmos a autoironia da encenação, mas não garantem propostas para os dilemas globais.