Desmontar a ampulheta e recriar as areias do tempo
por Guilherme Diniz
O que Fazer Daqui para Trás, do português (nascido em Paris) João Fiadeiro, investiga as noções de tempo, performando possibilidades inumeráveis de conceber e explorar a dimensão temporal em suas mais distintas significações, dinamitando a ideia de um tempo único e universal. Segundo o pensador Boaventura de Sousa Santos, uma das invenções mais perversas da chamada modernidade ocidental seria a destruição das temporalidades múltiplas em detrimento de uma razão temporal linear e unívoca que impossibilita os sujeitos de ampliarem suas percepções de mundo, bem como inviabiliza a experiência diversa dos vários tempos possíveis. Não há em cena uma dissertação ou explicação dogmática sobre o tempo, mas ensaios, rascunhos, esboços de reflexões e dinâmicas cênicas que não somente tateiam maneiras de pensar o tempo, mas também imaginam outras gramáticas sobre ele; isto é, outras formas de articular a relação do tempo com os seres e o espaço.
A configuração cênica se sustenta por meio de um dispositivo que se repete durante todo o espetáculo: um performer surge correndo dos fundos do palco totalmente despojado de objetos cênicos e compartilha um ponto de vista, uma dúvida ou um desejo com a plateia, acerca da vida, do tempo e suas relações. Há um solitário microfone posicionado no pedestal que amplifica as elocuções dos cinco performers, que abandonam rapidamente o palco assim que o próximo atuante reaparece acelerado. Entre um e outro performer, estão os intervalos irregulares, surpreendentes, sem uma ordem fixa no revezamento dos artistas cênicos. Em seu desenvolvimento, esse dispositivo cênico sofre constantes e imprevistas alterações, conferindo sentidos novos à repetição. A encenação de João Fiadeiro acentua gradualmente notas de comicidade a partir do insólito, da livre associação de ideias e imagens e das urgências dos performers, liberando um riso cúmplice entre atuantes e público.
O que Fazer Daqui para Trás delineia uma coreografia da exaustão, na qual a respiração descompassada, o suor e o esgotamento físico acentuam a crueza da corporeidade do performer em ação no tempo e no espaço, sem subterfúgios. A exaustão é um estado real que imprime outras formas de enunciação do texto, preenchendo as falas de vazios, respiros e suspiros, derivados de um cansaço esteticamente elaborado. A peça movimenta-se como um verdadeiro jogo; estado lúdico de disponibilidade, abertura para o inusitado, disposição para lidar com o insólito e o imprevisto, na trilha mesmo do pensamento da pedagoga teatral Viola Spolin, que diz: “Ninguém conhece o resultado de um jogo até que se jogue”. As certezas são demovidas, gerando um fluxo que prima pelo risco. O próprio processo de construção da peça, por meio do sistema intitulado Composição em Tempo Real, desenvolvido por João Fiadeiro (que é, a propósito, o Pedagogo em Foco, da MITsp), visa instaurar nos performers um estado criativo capaz de criar e organizar plasticamente as cenas no aqui-agora, assumindo os riscos, as precariedades e as incertezas do tempo presente, em toda sua potencialidade.
Em termos espaciais, O que Fazer Daqui para Trás expõe a ossatura do palco, revelando as varas de iluminação, refletores e as dependências internas do teatro Cacilda Becker, como se a carnadura do espaço se constituísse também como um elemento performático a exibir suas formas que possibilitam os desenhos, as movimentações basilares deste espetáculo. As gradações da luz são orquestradas em uma dinâmica altamente sutil, criando delicadamente sombreamentos e luminosidades que percorrem toda a área de jogo, afirmando-se pelo vagar de suas transformações, em contraposição às urgências dos cinco performers.
O que Fazer Daqui para Trás é, portanto, uma verdadeira ode ao encontro.