De perversos e contadores

por Renan Ji

Jerk (Babaca) @Nereu Jr

Sabemos que mitos e contos de fada nos apresentam um universo mágico-religioso, no qual relembramos não só de heroísmos e ensinamentos de vida, mas também do lado mais obscuro dos desejos humanos. Incesto, estupro, mutilações e vinganças de crueldade extrema são os ingredientes básicos de narrativas que, hoje, formam o repertório do universo infanto-juvenil e da nossa ancestralidade.

Além dessas narrativas orais, uma das formas de tornar esses arquétipos sagrados e assustadores uma experiência de humanização é a representação animada, ou teatro de animação. Nele, bonecos e outros tipos de objetos se tornam o meio pelo qual podemos reviver experiências dolorosas, terríficas ou traumáticas, mas que inevitavelmente remontam à nossa herança antropológica. A vitalidade dos bonecos – sua elasticidade e resiliência – se atira contra os perigos que nos rondam, sublimando parte do conteúdo escabroso da nossa alma, e relembrando-nos, concreta e ludicamente, de que o mundo é perigoso e as pessoas, mais ainda.

Essa premissa me parece ser um mote para entender o expediente cênico da diretora Gisèle Vienne, do dramaturgo Denis Cooper e do performer Jonathan Capdevielle, em Jerk (Babaca). Polêmico, esse expediente contrapõe fantoches e palavras, resultando numa espécie de curto-circuito da linguagem, na medida em que o lúdico dos bonecos reencena o instinto aniquilador de um assassino em série e seus comparsas. Desse modo, um urso panda se torna um perverso torturador, que se junta a um boneco de voz esganiçada e infantilizada para violentar outros bonecos. A estética da animação consegue descrever de maneira ao mesmo tempo lúdica e obscena atos homicidas e perversos, assim como seu potencial fantasioso dá forma à atmosfera de alucinação daqueles personagens.

Um dado que chama a atenção é o trabalho de voz de Jonathan Capdevielle. Ele não só frequenta – quando manipula os bonecos – o registro vocal típico da contação de histórias, como acaba por se transformar ele mesmo em ”boneco”, quando narra acontecimentos utilizando a técnica do ventriloquismo. Em ambos os casos, os efeitos parecem similares: vozes de um universo mítico e maravilhoso dão forma a temas profundos da psique e da sexualidade, possibilitando que nos aproximemos de nós mesmos com medo – mas um medo lúdico que transforma essa defrontação com a própria sordidez humana em ocasião não tanto de trauma, mas de autoconhecimento e visão de mundo.

Há, no entanto, um dado que me parece relevante: notemos que as vozes são acompanhadas de outras camadas sonoras. Acompanhando as “desventuras” dos bonecos, o trabalho vocal de Capdevielle reproduz sons grotescos dos atos sexuais, dos gritos das vítimas, do revolver das vísceras, retornando não exatamente à tradição mágico-religiosa dos bonecos e das narrativas lendárias, mas à comoção dos filmes de terror do gênero gore. Aqui, percebo um esforço de chocar o espectador, demovendo sua capacidade de reflexão e conhecimento através da narrativa, gozando antes com o requinte do detalhe, com a pulsação do ato sexual perverso, enfim, com o prazer fetichista de exibição que exige o detalhismo gráfico e uma trilha sonora cortante.

Nesse sentido, Jerk (Babaca) parece se encontrar a meio caminho entre duas matrizes: a imaginação mítica das histórias atemporais, que nos ensinam e comovem desde que o mundo é mundo, e o repertório sombrio e maníaco dos filmes de terror – que se apoia na técnica para incrementar seu gosto por sonoplastia e litros de sangue.

O trabalho performático de Capdevielle em muitos momentos se equilibra nessa tensão. Esse jerk (“babaca”) quer  ensinar o absurdo da vida ou quer somente ver os esgares de um espectador aterrorizado? Quando o performer brinca de assassinar, ele quer dar a conhecer a nossa sombra ou só quer exibir o que ela foi e é capaz de fazer?

Por fim, vale a pergunta: o que bonecos, contadores de história, mitos e lendas – e até mesmo psicólogos – podem ainda dizer quando um som metalizado e estridente de uma música incidental nos ensurdece os ouvidos – e chacoalha nossos cérebros?