A casa caiu?

por Dodi Tavares Borges Leal

Contos Imorais - Parte 1: Casa Mãe ©️Jean-Luc Beaujault

E se as instituições que dão pilar à sociedade estivessem à beira de cair com um sopro? Na fábula dos três porquinhos aprendemos, dentre outras coisas, que proteger-se do lobo mau depende da força das estruturas que erguem. Em Contos Imorais – Parte 1: Casa Mãe (Contes Immoraux – Partie 1: Maison Mère), vemos que água mole em papelão mais mole ainda tanto bate até que cai. E perguntamos, de que matéria física é feita a democracia? Para preservar as instituições dos desgastes precisamos erguê-la com que matéria?

Uma casa sob encomenda do IKEA. Monte você mesmo! Será que a mega-loja passou a vender também um kit Estado de direito democrático com instruções de instalação e de uso? Phia Ménard nos apresenta o (nosso) chão com uma série de peças que acabam por tornar-se espetinho de palco. Placas voadoras. É preciso dar adesão às junções. Toda a matéria vem do chão. Fita adesiva pode colar pedaços de poder? A personagem arranca no dente. Pedaços de fita. Sua compulsão, em certa pressa crescente, e a colagem de fita sobre fita nos indicam que é preciso fixar bem. Ela parece que tentou com todas as suas forças que a casa ficasse de pé.

“Qual é a figura que você leva para a cena?”. Perguntou-se à Phia Ménard após a primeira apresentação de Casa Mãe no Sesc Pinheiros, pela MITsp 2020. Ela responde: “Femme. Femme. Femme!” Uma mulher. Aqui no Brasil há algumas décadas, antes das construtoras reinarem o mercado, quem construía as casas eram os pedreiros. E Phia é uma pedreira da cena, uma soldada com suas lanças e armadura. Às vezes ela se enfia embaixo do chão de placas e desprega seus ligamentos construindo assim um teto. Ergue uma parede, depois outra, depois outra. A mulher maneja a destreza do equilíbrio. O som de fábrica da paisagem logo adianta o tilintar metálico-hidráulico e a profusão de chuva que está por vir. Por ora, uma casa maluca, onde imagina-se viver em uma planitude diagonalizada.

A estrutura da possível casa balançando nos dá aflição enquanto público. Algo que nós cidadãs/ãos sentimos quando as instituições democráticas estão abaladas. E parece que só há uma pessoa que tem o cálculo de salvá-la. Ou de vê-la ruir. É uma grande guerreira travesti. Ela ousa até mesmo tirar um sarro com quem é espectador/a: fecha na nossa cara a quarta parede. Da casa e da cena. Onde ficam as convenções teatrais quando o cenário é uma gangorra e quando a casa está de ponta cabeça? Qual a força de constituições democráticas quando as superfícies já não se mostram planas, nem verticais?

Lá de dentro sai uma pessoa trans com uma serra elétrica. Ela rasga as paredes. A serra pode ser suas unhas. Eis que visualizamos o Parthenon. A casa do povo? Berço da democracia, ou avesso da democracia. Lembramos do texto Casa Vacía de Paul Preciado no qual ele correlaciona a pressa em mobiliar uma casa com a cisgeneridade naturalizada que precisa preencher os espaços sem lidar com os vazios com as quais as transições nos fazem viver. Construir a própria casa, uma avenção da transgeneridade.

Aí vemos ela ao lado da casa construída. Estamos a perceber o tempo que leva para os objetos se modificarem. O temporal cai e faz ruir impiedosamente as instituições democráticas erguidas. Acompanhamos as colunas desmancharem uma a uma. Os ladrilhos cedem. Grande fumaça vem de cima enquanto as colunas se dobram. Parece que a casa vai cair mais rápido, e juntar-se às poças d’água formadas no chão. E a travesti ao lado. É preciso notar que ela também esteve em transição o tempo todo. Uma gota trava.

Enquanto a casa caiu, vemos a mulher trans se erguendo com uma força adquirida gota a gota. Ela agradece dobrando a coluna do seu corpo, enquanto as colunas da casa já estão derrubadas. É traviarcado que fala?