By Heart abraçou a beleza e o risco da memória?
por Rodrigo Nascimento
“Musa, reconta-me os feitos do herói astucioso que muito peregrinou…”. Assim na Grécia Antiga os contadores de histórias, ou aedos, cantavam as aventuras de Ulisses. A Odisseia, um dos textos fundantes do cânone europeu, não nasceu escrito. Veio do esforço imemorial desses rapsodos de decorar os mais de 12 mil versos que mais tarde Homero fixaria na escrita. Esses cantadores viviam então sob a corda tensa da beleza e do risco: daí invocarem já de início os auxílios da Musa Mnemosine, a deusa da Memória. Mais tarde, com a normalização da cultura escrita, Sócrates lamentaria que Fedro não relembrasse a fala de Lísias sobre o amor e que por isso dependesse das palavras registradas no papel para dizê-lo. Lamentava, talvez, a indisposição de Fedro ao risco. A memória poderia falhar, mas o fascínio estava nisso: na disposição à aventura da lembrança.
É sobre esse risco que se lança o espetáculo By Heart, que tem texto, encenação e interpretação do português Tiago Rodrigues. A partir de uma memória afetiva, o diretor se propõe a tornar um episódio pessoal uma aventura coletiva. Sua avó Cândida, que lia e decorava textos quase compulsivamente, recebeu o diagnóstico de que estava prestes a ficar cega. Seu desejo: que o neto indicasse o último livro a ser lido e decorado. Tiago seleciona então Os Sonetos de William Shakespeare. Aí está a base dessa performance-risco na qual dez pessoas da plateia são convidadas a decorar no palco o Soneto 30 do bardo inglês: “Quando em meu mudo e doce pensamento/ Chamo à lembrança as coisas que passaram”. Um soneto sobre a visão que se vai e a memória que fica.
O risco parece estar em sugerir que o público de hoje – tão afeito às tecnologias do registro, à palavra impressa, ao vídeo e ao áudio – memorize em duas horas hexâmetros com um vocabulário já distante. Não se trata da representação de algo. Temos na verdade um jogo, no qual um roteiro prévio se abre ao risco do momento. A dramaturgia se constrói no palco e é sempre provisória, pois o espectador traz sua disposição e sua capacidade de interferência. Nessa cena limpa, feita de dez cadeiras de mesma altura uma ao lado da outra, temos o impulso do acaso de uma assembleia, em que Tiago Rodrigues parece desejar que as pessoas se sintam à vontade para errar, para mostrar sua vulnerabilidade e a expor a máquina falha e fascinante que aciona a memória.
Na medida em que mobiliza técnicas de memorização, a plateia também entra no jogo tímido de repetir tudo a meia-voz, escondendo os erros com um riso. Liga-se assim palco e audiência, mas liga-se também o gesto local ao gesto daqueles que o intérprete recorda: a Nadiêjda Mandelstam, que decorou os poemas do marido Óssip Madelstam, censurado e morto pelo aparato stalinista; ou a Boris Pasternak, que durante o Congresso de escritores soviéticos mobilizou a plateia para recitar em uníssono o Soneto 30 de Shakespeare, livrando-se provisoriamente da morte. Lembrar para não morrer. E assim de algum modo nos deparamos com a pergunta: qual seria meu último texto a decorar em vida? Que memórias trago comigo que nenhuma violência ou tortura poderá tirar? A essa altura, o jogo já possui feição inevitavelmente política. By Heart cala fundo em um país no qual a história oficial é feita do aniquilamento de toda uma cultura oral na qual se baseavam povos africanos escravizados ou indígenas massacrados. By Heart se abre assim para ser não só um jogo sobre o passado, mas uma provocação potente do presente.
Contudo, o jogo potencial se choca com o jogo real. Rodrigues não parece se abrir de todo à radicalização do presente. By Heart – “de cor”, em inglês – remete ao gesto de lembrança feita com o coração. Daí a hóstia laica entregue aos participantes. Nela está impresso o poema de Shakespeare. Comer aquele corpo e ressuscitar as palavras dentro de si. Mas, em determinados, as pessoas no palco parecem estar em uma chamada oral de uma escola conservadora. Uns chegam ao ponto de não comer a hóstia para relembrar o trecho já esquecido do poema. Não são provocadas a se perguntar como os versos de Shakespeare calam em seus íntimos. Será que isso se dá porque By Heart supõe uma universalidade da literatura que não está mais dada? Afinal, quando interpelado por uma das participantes sobre o porquê de não haver mulheres escritoras em todo o seu arsenal literário, Rodrigues responde com uma normalização do cânone do século XX. Sim, é um cânone patriarcal. Mas a participante acusa: se não lembrarmos dessas mulheres, serão esquecidas. Ali, quando ele mobiliza um “Este é o meu espetáculo”, quebra-se o encantamento e o jogo desliza para o solo egóico. Afinal, a memória é feita de escolhas: inconscientes, íntimas, políticas. E de uma proposta radicalmente polifônica, By Heart acabou por um momento incapaz de se abrir à beleza do risco. Ao fim e ao cabo, a participante parecia pedir para que o gesto de rememoração fosse também um pouco mais feminino, negro, indígena, brasileiro ou latino-americano. Pedia para que fosse um pouco mais nosso. Talvez assim as pessoas se sentissem mais irmanadas a mergulhar “de coração” na incrível aventura da memória de que somos feitos.