Quarantine em São Paulo: Diálogo radical ou apaziguamento?
por Rodrigo Nascimento
No Brasil de hoje, qual a possibilidade de encontrarmos espaços reais de escuta e de debate? Fora das conhecidas “bolhas” das redes sociais, de círculos de convívio e de trabalho, com que frequência pessoas de pontos de vista diferentes interagem umas com as outras? E, diante da possibilidade do diálogo, quais as chances de que os interlocutores em jogo tenham seus pontos de vista considerados como legítimos, sem que a discussão antes culmine na redução violenta do outro?
Em um período no qual ascendem no mundo discursos e organizações políticas de veio fascista, que se pautam pela aniquilação da diferença, a resposta a tais questões se torna ainda mais complexa. Afinal, como dialogar com alguém cujas opiniões eventualmente flertam com a própria negação da existência do interlocutor? De algum modo, é sobre perguntas desse tipo que o grupo britânico Quarantine, fundado em 1998, tem se debruçado ao longo dos anos. Em seu trabalho, que mistura dança, vídeo, teatro e performance, os limites entre o real e a representação são frequentemente testados, ao mesmo tempo em que o grupo liderado por Richard Gregory dá visibilidade ao discurso e ao cotidiano de pessoas comuns, sobretudo aquelas historicamente distantes do meio artístico e sem voz na sociedade (seja por pertencerem a grupos sociais desprestigiados, seja porque suas ideias, desalinhadas ou incoerentes, costumam ser rejeitadas nos meios progressistas).
Para o grupo, tais vozes são tidas como dissidentes por não estarem em sintonia com o que se vê na mídia de massa ou no discurso de lideranças políticas, mas por pertencerem a sujeitos desconsiderados no debate público. Sem a intermediação de uma narrativa cênica prévia, eles são convidados a compartilhar memórias pessoais, depoimentos e opiniões sobre a realidade, tudo a partir de situações prosaicas, como uma refeição ao redor de uma mesa de restaurante, uma partida de sinuca em um salão de jogos ou uma interação divertida em uma sessão de karaokê. A partir daí, nesses encontros, o Quarantine mistura artistas e não artistas e estimula o diálogo radical, aberto à possibilidade da divergência e do conflito. O fundamental parece ser o reconhecimento e a garantia do espaço para a emergência da diferença e das nuances – só assim, conhecendo em pormenor as formas de percepção do outro, alguma solução política coletiva, realmente democrática e não autoritária, poderá ser forjada.
Tal programa já foi esboçado em experimentações como White Trash (2004), considerado por Richard Gregoy um “balé sujo da realidade”. Ali, sete jovens brancos da classe operária britânica criam e performam ao redor de uma mesa de sinuca. Conversam sobre seu cotidiano e falam livremente sobre suas visões de mundo. O mesmo ocorre em Summer (2014), performance na qual dezenas de pessoas das mais variadas idades são colocadas no palco para responder a questões que nunca ouviram antes e receber instruções do público. Colocam-se, desse modo, em uma situação de desnudamento e risco. Similarmente, em No Such Thing, performance-evento que ocorre mensalmente desde 2012 em um café de Manchester, clientes das mais variadas origens e condições sociais falam sobre um assunto do momento. Em troca, ganham um prato de curry oferecido pelos próprios membros do Quarantine. Em suma, pessoas comuns postas em uma situação que borra as fronteiras entre o não artista e o artista, entre o performer e o público, e de algum modo são estimuladas a falar sobre si e sobre o que pensam. Ao agir dessa maneira, o grupo parece operar no sentido de desnaturalizar a própria prática cênica e tornar visível o que parecia antes invisível dentro do sistema democrático tradicional: a divergência e as contradições que habitam o comum.
Olho no olho?
A residência artística realizada pelo Quarantine nesta edição da MITsp, intitulada Olho no Olho: Quem Consegue Ser Visível na São Paulo de Hoje?, propunha-se a absorver a complexidade social de São Paulo, maior cidade brasileira, de quebra, para nós, havia a possibilidade de testar a potencialidade política do diálogo e do conflito em tempos de bolsonarismo. Nos primeiros dias, ao longo das atividades realizadas no Centro Cultural São Paulo (CCSP), o grupo compartilhou parte de suas práticas e de seu instrumental com os artistas inscritos para, em seguida, estimular a integração de pessoas comuns, sem experiência prévia com as artes cênicas. Tal integração terminaria com uma instalação performática apresentada por dois dias, na qual a participação dos espectadores seria estimulada.
A apresentação à qual o público teve acesso se constituiu de uma série de atividades que ocorriam quase simultaneamente durante duas horas. Uma espécie de micro-parada circulou pelos corredores do CCSP anunciando “Vai começar”. O que começaria? Seria preciso de algum modo seguir o grupo para sabê-lo? Artistas e não artistas logo se dispersaram e passaram a circular pelas rampas de modo impassível, sem nenhum gesto teatralizado. A movimentação sugeria que não deveríamos esperar nenhuma intervenção espetacularizada, mas antes uma reeducação do olhar: seríamos capazes de “ver” o que acontece? Qualquer um ali naquele espaço público seria um possível interlocutor? Quem é quem nesse espaço?
Um grupo de pessoas se posiciona em uma parede, cada um de modo razoavelmente equidistante do outro, olhando para frente e em silêncio. Uma placa indica que o contato visual é bem-vindo. Assim colocados, não é possível identificar quem é artista e quem não é. Aos poucos, os passantes não só estabelecem contato visual como também começam pequenas conversas sobre os mais variados assuntos. O tom geral é de diálogo amistoso. Ao mesmo tempo, outros integrantes da residência retiram cartazes de um pequeno cômodo no qual dezenas de cartolinas expõem as mais variadas frases: “Nós votamos no Bolsonaro”, “Este lugar é legal para passear”, “Cinco jovens já são uma conspiração”, “Os gays se sentem melhor nesta cidade”… Tudo sugerindo um turbilhão interativo prévio à realização da intervenção que foi materializado ali, naquelas frases que agora povoavam o pavilhão. Dispostos daquela maneira e circulando aleatoriamente pelas mãos dos performers pelo espaço do Centro Cultural, os cartazes colocavam lado a lado sentenças muitas vezes opostas ideologicamente, sem criar hierarquias. Somos assim interpelados por comentários possíveis de serem ouvidos ou lidos, mas com os quais nem sempre tomamos contato no cotidiano.
Simultaneamente, inicia-se jogo no cômodo ao lado, no qual artistas, não artistas e passantes fazem entrevistas-relâmpago uns com os outros. Apenas uma pergunta, profunda ou banal, projetada nas caixas de som, em volume alto. O acaso pode colocar frente a frente pessoas que muito provavelmente não interagiriam umas com as outras em seu dia a dia. Essa dinâmica se prolonga por duas horas, sem ambição de conclusão. Mais do que um fechamento, o que a intervenção sugere é um processo dinâmico, que aposta no risco da interação sem roteiro – aquela na qual poderemos de algum modo ser tirados de nossa zona de conforto para responder a uma pergunta inesperada, ler uma frase indesejada ou ouvir um relato de vida surpreendentemente diverso daqueles com os quais estamos acostumados. Estruturalmente, o conjunto parece pôr em xeque não só os limites entre o que é representação e o que é realidade, como também nossas posições definitivas sobre nós mesmos e o mundo.
Por outro lado, a questão que se impõe é se a radicalidade – e o risco – do diálogo propostos pelo Quarantine são levados a cabo. Sabe-se, na esteira de Chantal Mouffe, cientista política belga, que a democracia liberal, apesar de apregoar a universalidade da liberdade, tem dificuldade de abrigar a divergência e rapidamente responde ao conflito com violência institucional, justamente porque na base do conflito muitas vezes está a própria desigualdade econômica. Ao tentar tornar produtivo aquilo que nosso atual modelo político parece sufocar, o grupo busca as nuances de discursos e valoriza momentos de significação que podem brotar do acaso, aproximando-se daquilo que Mouffe chama de “pluralismo agonístico”. Tal expressão sintetiza a ideia de que o espaço político é essencialmente tenso, e uma democracia radical e plural deve se basear não na atitude do antagonista, para quem não há pontos de contato com o outro, mas na atitude do agonista, que reconhece a legitimidade de seu oponente e o trata como adversário, não como inimigo.
No entanto, ao restringir todo o processo de residência ao espaço do CCSP, é possível que houvesse o interesse de participação de pessoas que já frequentavam o centro da cidade, excluindo outras regiões e, de algum modo, as pessoas dali oriundas. Assim, fica a dúvida se o grupo conseguiu realmente engajar um público tão variado ao seu experimento estético-político. Foram integrados à residência os trabalhadores e trabalhadoras da periferia ou as pessoas das mais variadas religiões e espectros ideológicos? Provavelmente não, pois essa pluralidade radical não ficou tão explícita na apresentação realizada durante a MITsp. Houve disposição ao risco de encontrar aqueles que estão fora de um espaço que geralmente abriga sujeitos simpáticos às políticas culturais, à diversidade e até a certo progressismo político?
Talvez por não mergulhar de verdade no espaço da cidade, o grupo não tenha conseguido absorver a necessária pluralidade que aparentemente visava encontrar e, assim, frutificar na tensão. Fica a dúvida se por trás da proposta do Quarantine não há certa inocência pacificadora. O desejo de criar espaços de diálogos possíveis é nobre e necessário, mas parece superficial se não leva em conta as tensões estruturais que marcam uma sociedade profundamente desigual, como a brasileira. E talvez por isso tenha faltado certa vibração estética na intervenção do grupo – justamente porque não estimulou a fundo a própria vibração política. Restritos a uma dinâmica muito pessoalizada, baseada quase que unicamente no contato pessoal e afetivo ao longo da apresentação, o grupo parece ter deixado de lado uma dimensão que não pode ser ignorada em São Paulo e no Brasil: a visibilidade e a invisibilidade dos sujeitos dependem não só de uma disposição ao diálogo, mas de uma disposição ao rompimento de barreiras econômicas e sociais. Evidentemente, a residência do Quarantine não se propõe a resolver essa questão brasileira, mas parece ter faltado disposição para abraçar a tensão inerente ao processo de busca de alternativas para esse rompimento.