Oficinas de desempoderamento

por Daniel Toledo

A Jaula Invisível @Guto Muniz

 

I

Estamos no Brasil. Em uma das principais ruas do bairro Ipiranga, situado na zona sul de São Paulo, existe um casarão amarelo cuja fachada sinaliza o ano de 1927. Ali viveu, durante boa parte de sua intensa existência, a artista das letras, da música e da cena Maria José de Carvalho (1919-1995). Para além de circular entre universidades, conservatórios, teatros e casas de ópera, entretanto, Maria José ficou conhecida por promover, nesse mesmo casarão, uma série de saraus e encontros que marcaram a vida cultural da região na segunda metade do século XX.

O ano é 2020. O endereço é o mesmo, mas agora estamos na Casa de Teatro Maria José de Carvalho, que há dez anos funciona como sede da Companhia de Teatro Heliópolis, fundada por jovens artistas da maior favela de São Paulo, situada a poucos minutos dali. Poderíamos estar, por outro lado, na casa La Virgen de los Deseos, em La Paz, ou ainda na casa Los Deseos de la Virgen, em Santa Cruz. É nessas duas cidades bolivianas que funcionam as sedes do coletivo Mujeres Creando, em atividade desde 1992. Seja onde for, estamos na América do Sul, e por alguns instantes podemos respirar ares que nos lembram Abya Yala, um dos muitos nomes atribuídos ao continente onde estão fincadas nossas raízes, desde quando o mesmo ainda não havia sido invadido por colonizadores europeus.

Estamos em São Paulo. Caminhando a partir da estação metrô Sacomã, podemos seguir por alguns quarteirões até avistar o centenário casarão amarelo. Ao encontrá-lo, podemos entrar pelo portão mais à esquerda, atravessar a sala situada no piso térreo do edifício e nos deparar, mais adiante, com um espaçoso terreiro onde se destacam algumas árvores que possivelmente antecedem a construção da casa. No fundo do terreiro há um amplo galpão, integrado à área externa por grandes portas de vidro que permitem a entrada de luz natural. É nesse galpão que acontece, em uma manhã de sexta-feira, a performance A Jaula Invisível, realizada pela artista das letras, da cena e das ruas Maria Galindo, nascida em La Paz, na Bolívia.

II

Reunidos no galpão, não nos organizamos em fileiras, mas criamos juntos um círculo dentro do qual acontece a performance-protesto de Maria Galindo. Presa, desde o início, em uma jaula portátil com estrutura de bambu e malha de aço, a artista adentra o espaço, movendo-se como quem carrega, ainda que involuntariamente, quatro paredes em torno de si. De dentro da jaula, ela se comunica com o mundo externo, entregando a algumas integrantes do público cartazes com ilustrações e dizeres feitos à mão, como os que frequentemente vemos em protestos em diferentes partes do globo. “Quem me ajuda?”, pergunta, ao revelar cada novo cartaz e reivindicação, sendo prontamente atendida por aqueles que, mesmo situados do outro lado da malha de aço, recebem atentamente seu olhar e suas palavras.

Ao contrário do que eventualmente se poderia esperar, Maria Galindo não se apresenta com os coloridos trajes tipicamente associados às mulheres de seu país natal. Em vez disso, veste-se de preto e arrisca-se em impressionantes sapatos de salto alto. A eles, combina uma maquiagem pesada e um corte de cabelo que remete às estéticas punk e anarquista. Sobre o colo do vestido preto, no entanto, traz alguns colares vermelhos – esses, sim, de aspecto artesanal, como se tivessem sido feitos à mão por mulheres comuns, populares, da rua, às quais, veremos mais adiante, a artista constantemente se refere em suas reflexões sobre o feminismo contemporâneo. Não se pretende, em sua performance, reforçar qualquer tipo de estereótipo ou fronteira identitária, mas justamente rompê-los todos.

Enquanto Maria Galindo continuamente gira e arrasta a jaula, por vezes parecendo estar prestes a se libertar, percebemos uma crítica franca à falta de efetivo acesso de muitos corpos às instituições que organizam a sociedade. Ouvimos, através das grades, sobre uma luta que visa alcançar a soberania de todos os corpos, problematizando as raízes coloniais de um código penal que jamais produz justiça, mas sempre cárcere. E parece ser tanto aos cárceres concretos quanto aos subjetivos que se refere A Jaula Invisível, constituindo-se como um obra de múltiplos significados. A partir de um discurso bastante direto, e ao mesmo tempo repleto de sentidos, a performer se recusa, por exemplo, a “encarcerar-se” à condição de pertencimento a países ou estados – no lugar disso, defende que pertencemos a rios, montanhas, parque e desertos.

Pouco a pouco, quando muitas das espectadoras já têm cartazes em punho, fica evidente o enfoque da artista sobre a questão feminista, ali defendida como um “projeto de sentidos” e não somente um “projeto de direitos”. Ao mencionar a história colonial que aproxima brasileiras e bolivianas, assim como os efeitos dessa história sobre as ideias de Estado, justiça e igualdade, Maria Galindo refuta as propostas de um feminismo submetido à lógica liberal, ressaltando a importância de transformar o sistema, em vez de meramente incluir-se nele, a partir de imagens supostamente “emancipatórias”.

Em seu vigoroso discurso enjaulado, a artista problematiza ainda os critérios meramente biológicos que frequentemente condicionam nossas compreensões sobre a noção de gênero e a própria estruturação das sociedades contemporâneas. “De que falamos quando falamos de mulheres?”, questiona, considerando, para além das evidentes diferenças de idade, origem e classe, os variados contratos de matrimônio e as múltiplas relações com ditaduras estéticas e sexuais. Como uma insubordinada atração de circo, a performer bate a jaula contra o chão, reiterando o cansaço em proferir discursos “que não constituem realidade social” e integrar lutas “que parecem não se acumular”, ambos condenados, a partir de sua observação histórica, a repetir-se ciclicamente.

Francamente dedicada, então, à investigação de novos gestos e vocabulários para a luta política, Maria Galindo ressalta, por exemplo, a dimensão exclusivista das democracias contemporâneas, entendendo-as como meras “machocracias”. Questiona, mais adiante, o “feminismo das estrelas de Hollywood”, propondo um projeto de luta capaz de ler, para além de conhecidas referências hegemônicas, também a própria intuição, as ruas, os corpos das próprias mães e até mesmo os anúncios de emprego nos jornais. “Um feminismo artesanal”, resume, em busca de uma nova terminologia.

No decorrer do seu discurso, repleto ainda de perguntas e silêncios, a artista busca ultrapassar a ideia de empoderamento, tão frequente entre alguns discursos políticos contemporâneos, a artista anuncia, com boas doses de assertividade e imaginação política, a importância de se realizar “oficinas de desempoderamento”, dedicadas não mais às mulheres, mas, sim, a banqueiros, policiais, donos de museus e também pais de família. Não basta, portanto, o empoderamento, mas há de haver o movimento contrário, capaz de questionar e redistribuir o poder. E alguém tem que ceder.

Ao encarar e escancarar algumas das limitações históricas e discursivas da questão feminista, a artista e ativista boliviana nos revela a complexidade de uma luta que, em sua visão, não deve buscar somente maior inserção das mulheres no sistema-mundo vigente, mas, em lugar disso, visar a transformação efetiva das hierárquicas estruturas políticas, sociais, econômicas e sexuais que, apesar de tanta luta e tantas emergências, ainda em 2020 nos regem, mas quem sabe no fôlego de um último suspiro que antevê a esperada transformação da espécie humana.

III

Apresentada pela primeira vez no evento El Parlamento de los Cuerpos: los Parlamentos Imposibles, sob curadoria de Paul Preciado, Viktor Neumann e Andreas Angelidakis, a performance integra, dessa vez, a programação de encerramento do Laboratório de Experimentação LABEXP3 – Presenças Incômodas: Onde está a rebeldia?, conduzido por Maria Galindo em colaboração com a performer e artista visual brasileira Fany Magalhães.

Realizada no último dos quatro dias do laboratório, a performance da artista boliviana foi sucedida de exercícios apresentados pelas participantes do encontro, assim como uma conversa final mediada pela pesquisadora e curadora do encontro e do eixo Ações Pedagógicas da MITsp, Maria Fernanda Vomero. Cada qual à sua maneira, as performances que se seguiram à obra de Maria Galindo aconteceram no terreiro da casa, trazendo também reflexões e ações em torno da luta e da afirmação da soberania dos corpos em relação aos ditames do poder, do Estado e da religião. Tendo como recorrentes elementos os próprios corpos, assim como cadeiras de diferentes tipos e pequenos exemplares da Bíblia, os trabalhos chamaram atenção à objetificação e subalternização do corpo feminino na sociedade e no discursos que sustentaram a colonização do nosso território.

Como último gesto antes da densa e contemplativa conversa que encerrou o encontro, a artista Fany Magalhães aplicou, sobre uma parede do terreiro, uma série de lambes coloridos que chamam atenção ao silenciamento das mulheres em nossa história e realidade social. Afixados, agora, de modo permanente na antiga casa de Maria José de Carvalho, atual sede da Companhia de Teatro Heliópolis, a série de lambes se oferece daqui em diante como memória deste encontro, ganhando certamente novos sentidos a cada corpo que, por suas perguntas e imagens, se deixar provocar.