Por Christine Greiner
Eu pensei em propor três eixos de reflexão a partir dos espetáculos, das leituras e de algumas conversas que pude acompanhar:
1- A busca de uma linguagem para comunicar uma urgência, uma inquietação e não para manter a clausura em códigos específicos. Um dos grandes exemplos é Rabih Mroué. Ao ser indagado sobre a sua prática, se seria ou não teatro, afirmou que quando nos referimos a um certo modo de criar (o teatro, por exemplo) é normalmente porque as nossas inquietações querem dialogar ou criar confrontos ali com aqueles interlocutores. Não significa a clausura de um código específico. Esse é um tema já muito discutido, mas que sempre volta, de alguma maneira, nos debates. No caso particular da MITsp, o que me interessou em alguns espetáculos foi o modo singular de transitar, uma busca de linguagem fora de padrões, às vezes até disfuncional. Não me pareceu que fossem hibridações do tipo cinema e teatro, documentário e performance. Mas eu diria, talvez, um transporte de modos de pensar e perceber ou experiências sobre como a mobilidade pode sugerir procedimentos ainda não testados. Por exemplo: como editar uma cena teatral a partir de um modo cinematográfico de montagem, de um roteiro específico abrindo caminhos de percepção para repensar a expressão como na peça de Suzanne Kennedy Por que o Sr. R. Enlouqueceu? Ou como lidar com material documental registrado em celulares valorizando a mobilidade e a precariedade ao invés do tripé e da qualidade de imagem, para justamente dar corpo à imagem ou imagem ao corpo, encontrando aí a potância politica do movimento e de uma certa descontinuidade ou desfazimento, refiro-me à Revolução em Pixels, do próprio Mroué. Há uma disfuncionalidade deliberada em pensar o olho na palma da mão e o celular transformado em arma.
2- Outro eixo de reflexão que me interessou foi o que comecei a chamar, inspirada por um coletivo australiano que tem este mesmo nome, “Not yet it’s difficult”.
No caso, seriam as pesquisas que estão desbravando um caminho para testar temas complexos como racismo e colonialismo, a partir de referências aparentemente distantes mas que, na verdade, se descobrem muito próximas. Penso na ponte inusitada entre Heiner Müller, Angela Davis e tantos outros ativistas e na emergência de alguns momentos muito intensos que apontam a possibilidade de abordar um viver criar sofrer a partir de caminhos que escapam do já previsto e do já esperado, mesmo que uma vez ou outra estes reapareçam. Refiro-me, evidentemente, às 12 Cenas de Descolonização de Eugenio Lima e seu grupo, mas também poderíamos pensar na relação surpreendente proposta por Lia Rodrigues em Para Que o Céu Não Caia, que aproxima os universos floresta xamã de cracolândia favela. Não se trata de um recorte específico de tempo, de uma comunidade ou guerra localizada, mas de um pensar que parte da vida que não vale nada, dos estados de desamparo que, por sua vez, vão tecendo suas redes atravessando tempos, culturas e narrativas diversas.
3- O terceiro eixo de reflexão refere-se ao uso da ficção pra expor algo que está oculto ou o extremo oposto (e que acaba dando no mesmo), ou seja, tão exposto que parece invisível. Penso no personagem de Tão Pouco Tempo, de Mroué. Para valer alguma coisa não basta o corpo, mas é preciso ser símbolo, monumento, pedra que transcende. A construção de uma relevância igualmente ficcional que se exibe por um momento e logo desvanece.
A partir destes três eixos de reflexão, ao final da MITsp, comecei a me indagar se seria ainda possível ativar um movimento quando tudo conspira para a normalização e para o apaziguamento? O conflito apaziguado, sintoma soberano do neoliberalismo, é também aquele que não tem saída. Cada qual do seu lado, sem possibilidade de escuta, de troca, de se deixar agenciar pelo outro.
Quando o corpo não vale nada e a vida não vale nada, como agenciá-la? Para que? Para quem?
Que dramaturgias poderiam ainda testar esse movimento?
Como promover novos encontros?
Em um dos livros que inspirou Lia Rodrigues a criar a sua coreografia Há mundo por vir? Ensaio de medos e fins, de Eduardo Viveiros de Castro e Daniela Danowski, fala-se de um excepcionalismo do ser humano, que poderia ser sintetizado em linguagem, trabalho, lei, desejo, tempo, mundo e morte. No entanto, como explicam os autores, nas cosmologias ameríndias o que define a humanidade não é nada disso. Trata-se antes de mais nada de um devir-outro, de metamorfoses erráticas, de uma corporalidade desorganizada e tudo aquilo que não se restringe ao dado a priori, ao pronto. Daí os rituais dos ciclos de vida, a gestão metafísica da morte e o xamanismo como diplomacia cósmica.
Penso então nas faíscas desse devir-outro que em algumas experiências da MITsp foi traduzido como um devir-cidadão.
São corpos tão precários e desesperançados que devir-outro seria finalmente devir-cidadão no sentido mais básico do direito à vida que não seria a vida indigente, coisificada.
Heiner Muller perguntava o que pode o teatro num mundo mutável, mundo de fomes e de guerras. Ele não sacia nenhuma fome, não cura feridas, não ressuscita morto. A sua resposta era que o teatro poderia imaginar o mundo sem fome, sem guerra e sem privilégios. Mas não foi o que vimos na MITsp. Durante a semana, as experiências não imaginaram nenhum tipo de utopia. Pelo contrário. Muitas expuseram suas feridas.
Durante o debate final comecei a pensar em como seria possível pensar um outro formato para que ocorresse, de fato, uma reflexão sobre e a partir dos acontecimentos, sem apartar a teoria da prática e escapando do modelo clássico no qual cada um diz algo que lhe interessa (quase sempre redundante), sem que ocorra efetivamente uma escuta ao outro, sucumbindo a uma replicação do ranço acadêmico (congresso na versão evento artístico).
A escolha dos espetáculos tem sido fantástica, apontando questões muito relevantes para todos nós e construindo uma espécie de cartografia politica e estética que não se restringe a fronteiras identitárias e, ao mesmo tempo, expõe as questões locais. No entanto, as mesas de discussão e conversas seguem os formatos tradicionais.
Talvez o próximo passo seja abandonar estes formatos e pensar novos modos de ativar as pontes entre teoria e prática (conversas e movimentos), espaços de apresentação e público, na rota, quem sabe, de uma Pandemia estendida não apenas na cidade, mas no tempo, com ações pontuais que desestabilizem a cidade o ano todo, aqui e ali, até finalmente encontrar na semana da MITsp um turbilhão de atividades e apresentações.