Quem somos no crepúsculo?
por Laís Machado
Inspirada no romance homônimo de Virginia Woolf, a artista suíça Julie Beauvais e o francês Horace Lundd desenvolvem o trabalho intitulado ORLANDO. Uma instalação multi-tela, organizada em formato de heptágono, onde são projetadas imagens dos sete “Orlandos” escolhidas por Beauvais, enquanto uma performance sonora é executada ao vivo tentando acompanhar os fluxos criados e estabelecidos pelos vídeos. A obra intenciona produzir uma experiência imersiva e meditativa, e o público decide de que modo gostaria de interagir com a instalação: dentro da estrutura – para onde estão voltadas as caixas amplificadoras e onde está sendo executada a performance musical – ou do lado de fora. E também pode decidir a sua posição em relação aos vídeos projetados – podendo se aproximar, olhá-los em perspectiva, deitar, sentar, caminhar.
Orlando, personagem principal do romance de Woolf, leva uma vida que transcende os limites do humano. Vivendo uma existência de mais de 300 anos. Ora como um homem, ora mulher. A fluidez da identidade dessa figura serve como ponto de partida para a discussão que Beauvais propõe sobre os limites identitários por onde navegam os corpos andróginos. Mas, apesar de cada Orlando ser completamente diferente um do outro em muitos aspectos físicos, idade e contextos culturais bastante diversos, todos os vídeos se assemelham: na qualidade de movimento das performances e enquadramento dos Orlandos; nas paisagens abertas; no tempo dilatado; nos dois terços de céu e um terço de terra que compõem a fotografia e no espaço azul que antecede a chegada do Sol.
A autora chama o que tem feito nesta obra de neorrenascença, um novo movimento espiritual, uma nova forma de experimentar a realidade e uma busca pela centralidade do humano diante das questões que afligem o mundo. O nosso mundo. Mas qual seria o recorte do humano feito por essa nova renascença? Não podemos ignorar que o humano também é um conceito, uma ideia, uma invenção. E buscar algo essencialmente humano, em 2020, talvez devesse vir acompanhado do reconhecimento da invenção dos critérios de essencialidade. Caso contrário o que diferenciaria esse movimento de uma nova postura colonizante?
Os performers são aqui chamados pela autora de “precursores do pós-binarismo”, e sua posição dentro da obra é a de agentes da propagação de uma frequência meditativa. Existe aí uma consistência na execução dessa proposta. Reconhecível tanto pelo estado meditativo no qual se encontram os performers no vídeo, quanto pela atmosfera dilatada que se estabelece em pouco tempo de fruição na instalação.
Em conversa, Beauvais compartilhou parte do seu processo com os performers e as tentativas de mergulho em seus universos internos. Mas isso me fez questionar: por que seriam estes os “precursores do pós-binarismo”? Há algo em suas biografias que a fez elegê-los como esses “embaixadores”, a despeito de toda produção mundial sobre identidade de gênero? Ou ela os chama assim porque foram iniciados, através do trabalho que desenvolveu com eles durante semanas, neste novo movimento espiritual? Não haveria incômodo sobre nenhuma dessas afirmações se não houvesse o movimento de deslocamento para outros contextos culturais. A fim de examiná-los, aplicar o mesmo método e obter a mesma resposta. Configurando-se numa postura quase missionária.
Por fim, há que se ter cuidado ao criar estratégias para o rompimento da lógica binária que rege a estrutura social global. Uma vez que sempre há o risco de simplificação da realidade criando novas polarizações. Se a aurora é a potência, existe a possibilidade de previsão além do desejo de criação? E, se a aurora é diversidade, caberiam critérios de análise dessa realidade como evolução?