O veneno e o antídoto

por Daniel Toledo

Orlando @Guto Muniz

Foi somente em meados do século XVIII, conforme destaca a antropóloga, escritora e educadora surinamesa Gloria Wekker, que a dita Europa Ocidental, capitaneada pela ostensiva cultura vitoriana e sua ampla influência sobre o sistema-mundo colonial, concebeu a diferença de gênero como um eficiente instrumento de perpetuação da lógica patriarcal necessária à expansão do capitalismo ultramarino. Como um conceito, nos lembra Gloria, a ideia de gênero não existia entre muitos povos negros e indígenas: até a colonização, o mundo não-europeu experimentava entendimentos mais fluidos e múltiplos sobre a existência humana. Após a invasão de Abya Yala, entretanto, a não-existência do gênero conduziu à categorização dos povos colonizados como animalescos e não-humanos.

Visando problematizar binarismos sempre redutores, assim como evidenciar indefinições, inadequações e imprecisões de gênero que, conscientemente ou não, pairam sobre cada um de nós, a obra ORLANDO, realizada pela artista suíça Julie Beauvais e pelo francês Horace Lundd, apresenta como referência central o livro homônimo da escritora inglesa Virginia Woolf. Reunindo performers de diferentes origens, dentre os quais uma argentina, um brasileiro e uma congolesa, o trabalho se apresenta, portanto, como possível antídoto a um pernicioso veneno disseminado mundo afora pela ação colonial cujas origens remontam ao mesmo continente que agora vem nos “iluminar”.

Ao entrarmos no teatro, acessamos o palco e não o espaço geralmente destinado à plateia. Ali nos deparamos com uma grande videoinstalação imersiva constituída por uma estrutura heptagonal em que filmes de curta duração se alternam em cada uma das sete telas. Cada filme destaca um personagem diferente, situado em paisagens distintas, mas igualmente esvaziadas, a partir de um enquadramento que se repete e coloca em destaque o corpo humano. É como se estivéssemos diante de espantalhos ao contrário, à medida em que tais corpos, posicionados sempre de frente para a câmera, com braços livres e pés fincados no chão, convocam sem trégua o olhar ativo e atento daqueles que os observam.

Filmadas sempre no alvorecer do dia, as imagens trazem corpos à frente de variadas paisagens naturais e urbanas, frequentemente afetadas por fios e rajadas de vento que parecem querer movê-los, torná-los fluidos, quem sabe transformá-los. Testemunhamos, além dos corpos, ondas que vêm e vão, nuvens que continuamente se movem, plantas que se agitam com o vento, pássaros que vez ou outra atravessam o céu. Por que não se moveriam, então, também os corpos humanos que vemos dentro e fora das telas? Quais seriam os efeitos desses movimentos internos e externos sobre a percepção que temos a partir de cada um dos corpos ali posicionados para nos espantar? Haverá de fato algum espanto pelas bandas de cá?

Para além dos pés enraizados, das mãos e braços abertos ao espaço, podemos perceber que os corpos nas telas têm os olhos fechados, como se olhassem para dentro e recusassem o nosso olhar. Enquanto mergulham em si, experimentam movimentos lentos: mãos que se abrem, braços que se movem, rostos que giram, queixos que se pronunciam. São corpos em expansão e contração, em relaxamento e tensão. São rostos que se modificam a partir do ângulo que desenham em relação à câmera, braços que por vezes escondem os rostos, revelando certa indefinição que profundamente permeia, em maior ou menor medida, de modos mais ou menos visíveis, as aparências e profundezas de cada um deles – e também, a quem interessar possa, de cada um de nós.