JOVIDA-20

por Dodi Tavares Borges Leal

O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven) @Nereu Jr

Jo Clifford em apresentação especial de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven), texto de sua autoria e  direção de Susan Worsfold no CCSP, no quadro da 7ª MITsp, nos coloca diante do desespero do senso comum cisgênero em relação às pandemias e suas insanas tentativas de cuidado. O fatídico ano de 2020 nos faz viver em meio a uma complexa circunstância de alternância entre os processos de propagação de um novo vírus e os seus mecanismos de contenção; mas também vivemos em meio à propagação e contenção das transgeneridades e de todas as ideias e existências subversivas ligadas a elas.

A diferença entre o coronavírus e a incansável labuta teatral de Jo Clifford, cuja peça completou dez anos de circulação em 2020, é que o covid-19 induz a um pavor de aniquilação da espécie humana por intermédio de contágio microbiológico enquanto a jovida-20 está ligada a uma excitação sobre a eminente finitude da cisgeneridade normativa; excitação que é transmissível. Em ambos os casos encontramos governos à beira de um ataque de nervos ao instigar que, por um lado, aquelas pessoas possíveis hospedeiras do vírus entrem em isolamento e, por outro lado, que as pessoas trans sejamos eternizadas em nossas quarentenas de confinamento social para que se evitem vãs pandemias de gênero. Enquanto o discurso de Jo em cena mostra uma Jesus preocupada com o contágio de prosperidade de vida, temos neste mesmo mês de março de 2020 a Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul às voltas com uma criminosa palestra intitulada Epidemia de Transgêneros: O que Está Acontecendo com as Nossas Crianças?. A verdade é que a propagação de dogmas cisgêneros é a real mazela que tem levado ao genocídio de pessoas transgêneras, antes mesmo de qualquer nova mutação viral e sem que a sociedade tomasse medidas efetivas de proteção às vidas trans.

O resplandecer de vida travesti é a ressurreição que a teatra de Jo Clifford propõe a toda morte provocada por exclusão, doença, perseguições políticas e patologização das corpas não cisgêneras. Na arte e no cotidiano, vida travesti contra todos os vírus de cisgeneridade. Jovida-20 é a leitura de trans pra frente do evangelho cristão em uma operação da teatra no sentido de revisão transfeminista, terapêutica e de cura dos materiais cispatriarcais brancos dominantes, os quais são a real fonte de todas as enfermidades do mundo. Quando se comunga o corpo de uma travesti, os fármacos assumem sua função natural: a vida. A comunhão trans é respiro de vida para todas as populações.

Assim como Renata Carvalho em sua versão brasileira da peça, O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, Jo Clifford foi extremamente perseguida politicamente e posta em quarentena por seu trabalho teatral perigoso. Sua dramaturgia põe em risco a cisgeneridade, a branquitude, o machismo e o capitalismo. Em contrapartida, sua benção alcança até mesmo os nossos algozes: o ódio é o pouco que eles têm e perderão este pouco. Se já não perderam.

Chamadas/os ao palco para a grande mesa do ofertório das palavras da Josus, as/os espectadoras/es testemunham a glória suntuosa da unção de novos tempos de liberdade. A comunhão de seu corpo e de seu sangue vivo é também o presságio da transição dos mandamentos cristãos para a palavra travesti, cristrans. A peça nos aponta o ensinamento reverberado por Érica Malunguinho durante a edição do Sarará Trans que ocorreu na Encontra de Pedagogias da Teatra, realizada dias depois no mesmo prédio do espetáculo. De acordo com a deputrava estadual de São Paulo, as lutas étnico-raciais e de gênero não são diversidade. São fundamento!

Enquanto Cuba está à frente das quase descobertas de vacinas para prevenir o espalhamento do covid-19, as travestis são alicerces que dão alastramento a cosmovisões insubordinadas e anticoloniais. Neste sentido, é paradoxal que, se em The Gospel According to Jesus vemos uma esplêndida rainha mãe inglesa falando para nós e por nós através da bênção de vida, Caz Ångela na dramaturgia latino-americana sudaca de Gota Trava amaldiçoa a cisgeneridade proclamando que para novas liberdades acontecerem, as formas tóxicas de hegemonia social precisam ser extintas. Também apresentada na programação da Encontra, na qual Jo nos premiou com uma abertura litúrgica no dia 10/3, Gota Trava, esquete de teatra do ILUMILUTAS – grupo de estudos de iluminação cênica e processos sociais da UFSB, é a adaptação de Medeia (de Eurípedes) e Joana em Gota d’Água (de Chico Buarque e Paulo Pontes).

Todo o burburinho que caminha junto com a covid-19 traz consigo a restrição ao toque como forma de impedimento do contágio do novo vírus. Não é de se surpreender que o aspecto mais atacado da ida de Drauzio Varella ao presídio para uma matéria sobre as condições de vida de pessoas trans encarceradas, exibida pela rede Globo no primeiro dia do mês, tenha sido justamente o abraço que deu na Suzy de Oliveira. As pessoas trans  somos extensivamente e vergonhosamente impedidas ao toque e ao afeto. Chegamos até mesmo a cogitar se o poder de pavor gerado pelo coronavírus não seria uma oportunidade que a cisgeneridade tem diante de si de perceber o isolamento compulsório relegado à vida de pessoas transgêneras.

Jo aponta a busca por desobediências de gênero sem letalidades. Afinal de contas, não haverá vida humana possível pós-coronavírus sem as travestis vivas.