Pesquisadora em foco
por Daniele Avila Small, Luciana Eastwood Romagnolli e Sílvia Fernandes
Ao menos desde Hysteria, com o Grupo XIX, os tabus em torno da sexualidade feminina fazem parte do seu trabalho. Em Conversas com Meu Pai, isso ganha uma pessoalidade, como um processo de elaboração e ressignificação de memórias. Como o projeto Feminino Abjeto radicaliza essa perspectiva e prepara o caminho até Stabat Mater?
Tem mudanças importantes aí. O feminino que eu abordava em Hysteria (digo eu para não falar pelas outras, acho que cada processo ali foi bastante pessoal) era de certa forma um feminino em terceira pessoa, abstrato, sem me ver completamente implicada. Eu era muito jovem. Tinha 19 anos! A peça era para mim, naquele momento, uma tese, uma defesa, uma causa. E também, sobretudo, um encantamento com a história daquelas mulheres. O que vai acontecer depois é uma curva de implicação total. Em Conversas com Meu Pai certamente, em termos biográficos, mas não ainda sobre a questão do feminino. O feminino ali está no avesso, está em negativo. Eu não fui capaz de perceber o seu significado. Não percebi porque ainda não era capaz. Foram os movimentos pessoais, virar mãe, revisitar questões do passado à luz do feminino que eu descobria em mim, que me fizeram perceber essa lacuna, esse ato falho. E todo o processo de Feminino Abjeto, o 1 e o 2, até chegar no Stabat, foi essa busca: trazer, lá das sombras, esse feminino.
O que uma equipe formada por mulheres trouxe para a sua experiência de processo criativo?
Essa necessidade foi se revelando aos poucos. Comecei com duas parceiras, a Lara Duarte e a Ramilla Souza. Querendo, precisando de novas interlocuções. E nesse momento foi o interesse pela maneira como elas viam a cena, o teatro, que me atraiu, mas com o caminhar da história fui sentindo muita necessidade de que fosse uma conversa, uma troca entre mulheres. E aí os encontros foram se dando: coincidências, sintonias. Elas foram chegando aos poucos e cada uma contribuindo não só nas suas funções artísticas, mas com seus pontos de vista como mulheres, contribuições muito específicas. Flávia Maria, por exemplo, que seria uma preparadora de voz, foi na verdade quem primeiro abraçou minha mãe no processo a partir das aulas de canto. Essas aulas logo prescindiram da minha presença – na verdade, a Flávia me expulsou! (risos) – para que minha mãe fosse criando um espaço dela! As músicas que ela canta na peça surgiram ali, das longas conversas entre as duas. Penso na Lillah também que, mesmo à distância – ela estava em Berlim –, foi uma interlocutora fundamental da dramaturgia como um todo. Uma provocadora super precisa, crítica. Eu estava colada demais ao material. Olhares como o dela, delas, me davam distância para enxergar várias coisas. Me lembro com emoção de vários momentos com todas. Experiências importantes que elas testemunharam. Quero registrar o nome de todas aqui: Paula Hemsi, Laíza Dantas, Lana Scott, Luiza Moreira Salles, Carla Estefan, Kênia Dias, Jhenny Santine, Maria Amélia Farah, Melina Schleder, Wilssa Esser, Ju Piesco. Sou muito grata a elas pela cumplicidade e contribuições artísticas.
Stabat Mater tem um poder de afetação principalmente das espectadoras mulheres, que testemunham, relatam e escrevem sobre a experiência como um acontecimento que transformou suas vidas. Como você explica essa intensa ressonância de afetos?
Fico muito tocada com as mensagens que recebo, relatos, sonhos, uma reverberação muito forte mesmo. Existe um movimento feminino, feminista muito intenso hoje. A peça tem isso também, mas acho que seu lugar é mais o do inconsciente, das sombras, do não dito. Acho que para além dos discursos, daquilo que nós já sabemos sobre nós, tem tudo aquilo que nós não sabemos. Eu acho que no Stabat tem um curto-circuito desses saberes e não saberes. Talvez seja por aí que a peça crie essa identificação, essa “afetação” como você disse.
Há uma cultura de silenciamento da mulher acerca das violências sexuais, que aparece explicitamente em Stabat Mater, por exemplo, quando você informa que uma denúncia antes considerada “tentativa” de estupro passa a ser entendida como “estupro” e ponto. Como tem sido para você o processo de enfrentamento disso e que estratégias têm encontrado diante das instituições patriarcais?
Me lembro de uma situação com umas seis amigas na qual começamos a falar de abuso. TODAS tinham passado por alguma situação séria de abuso e em mais de quinze anos de amizade NUNCA havíamos falado sobre isso. Pra gente perceber que durante muito tempo a regra era guardar para si, superar. É uma negação total. Uma não permissão. A gente não falava sobre isso. Assim como não fala sobre aborto. Vamos empurrando tudo para baixo do tapete. Para mim, por exemplo, foi muito difícil dizer: fui estuprada. No dia seguinte do estupro, eu acordei, vesti a mesma roupa do dia anterior e fui para a escola. Eu tinha 15 anos. Passei anos sem falar com ninguém sobre isso. Uma tentativa de passar por cima, “ser forte”, seguir a vida. Era esse o modelo de mulher que eu tinha: ser forte, aguentar tudo. O preço é alto… Foi muito bom revisitar tudo isso com a minha mãe. Nós nunca mais tínhamos falado sobre e só voltamos a falar no processo da peça. É um passo pessoal, mas não só. Existe um movimento enorme – uma onda! – desse trazer à tona, dialogar, reivindicar. Nesses anos, muita coisa aconteceu. A partir de 2012, o “abuso” que eu sofri passa a ser visto como “estupro”. O que é muito importante como avanço em relação ao entendimento sobre a violência contra a mulher.
Sobre as “estratégias” que vocês perguntam… Bom, eu, por enquanto, tenho encontrado na arte e na academia esse lugar de “enfrentamento”. Meu caminho até aqui tem sido esse: primeiro, de uma visitação dessas sombras e fantasmas, segundo, uma elaboração artística, reflexiva e teórica que tem me acompanhado desde o processo do Conversas e, por último, mas não menos importante, os encontros. Desde que comecei a pensar em tudo isso, encontrei muita gente, centenas de pessoas: nos núcleos de pesquisa Feminino Abjeto 1 e 2, nas oficinas que coordeno, mesas, palestras e a cada apresentação também. Essa troca com as pessoas, troca artística e pessoal, gerou uma rede incrível. Muita gente pensando esses temas, essas questões, mas sob uma ótica que não é maniqueísta, simplificadora. A gente precisa suportar as contradições, as nossas próprias contradições sobretudo! Do contrário, a gente fica fazendo discursos mágicos que pouco dizem desse território sombrio por onde se movem nossos desejos e pulsões.
O experimento é uma performance crítica das representações do feminino que mantém o tensionamento na transmissão da feminilidade de mãe para filha. No processo de trabalho, como e quando surgiu a ideia de dividir a cena com sua mãe e de incluir a imagem do parto reverso de seu filho?
Eu tenho dificuldade de lembrar em que ordem as coisas acontecem no processo! Mas lembro, por exemplo, que no primeiro encontro em 2017 do núcleo de pesquisa Feminino Abjeto (que naquela altura não sabia ainda que seria o 1) propus que cada participante procurasse saber e contasse ao grupo sobre seu nascimento. Naquele dia, eu também contei sobre meu nascimento, mas mostrando as imagens do parto do meu segundo filho. Ali, já havia essa relação entre ter me tornado mãe, mas precisar voltar ao meu nascimento, ou à relação com minha mãe. Eu ainda não rebobinava tecnicamente a imagem, mas já estava fazendo isso de certa forma conceitualmente, autobiograficamente. Já a minha mãe… Nossa, não tenho a menor ideia de quando isso ficou claro! Mas o fato é que eu só tive coragem de fazer o convite pra ela muito tempo depois de pensar isso “no papel”. Passei meses ensaiando com as minhas parceiras Lara e Ramilla “fazendo” a minha mãe. Certamente, convidá-la foi o passo mais difícil de todo o processo.
Como a psicanálise e a arte se relacionam, para você, na elaboração de traumas relacionados ao feminino e na subversão dos enquadramentos de gênero?
Eu sou apaixonada por psicanálise desde o processo do Conversas com Meu Pai. Mas lia muito Freud, Lacan, Winnicott, Gilberto Safra. Foi incrível. Meu mestrado, o Conversas e minhas questões pessoais se misturaram completamente nessas leituras! (risos). Mas aí descobri a Julia Kristeva, a Melanie Klein, a Maria Rita Kehl, mulheres psicanalistas… Não à toa. Tem a ver com esse feminino que foi saindo das sombras e procurando uma interlocução mais pessoal, por um lado, e por outro, social, na perspectiva de gênero. A psicanálise, em geral, ao contrário do que se pensa de forma muito preconceituosa, não trabalha com o fechamento, mas com a abertura. Não trabalha com a positivação, mas com a negatividade, ou seja, aquilo que permanece como “não-ligado” no simbólico. Foi a psicanálise que me abriu a perspectiva de pensar o feminino via o abjeto. Em suas zonas de fronteira, de hesitação, de crise.
Em Stabat Mater, ao mesmo tempo em que há a abordagem analítica e discursiva, vemos também a força do corpo em nudez, do corpo em ação. Para você, como essas duas dimensões, da linguagem e da materialidade da carne, se complementam ou contrapõem?
Acho que é as duas coisas mesmo: complemento e contraponto. E aí volto para a psicanálise tomando as noções de simbólico e semiótico que a Kristeva desenvolve brilhantemente. Em todo o processo de simbolização permanece essa “margem”, aquilo que não consegue ser domado pelo regime simbólico. Essa pressão na linguagem é feita pelo “real”, ou pelo semiótico como propõe a Kristeva. O real do corpo, da experiência do corpo, não totalmente legível, ou passível de elaboração pela linguagem entra aí. Eu tenho interesse justamente nessa tensão: a tentativa – desesperada – de entender, ao mesmo tempo, a noção desse fracasso quando as experiências do corpo, no corpo, geram consequências que o saber racional não acessa diretamente.
Aparentemente, a intensificação da teatralidade no jogo com o real autobiográfico opera um certo deslocamento dos documentários cênicos que você realiza desde 2008. Se essa impressão é verdadeira, a que se deve essa mudança?
Acho que se deve justamente ao ponto da questão anterior: o embate entre corpo e experiência versus elaboração intelectual, formal. Digamos que eu fui passando de um real “documental”, mais próximo da ideia de “memória”, do narrar, do registro, para um real “abjeto” ou o “real do trauma” como propõe o Lacan, que precisa encontrar uma forma de irromper, vazar, emergir, mas não se deixar organizar completamente pela via da narração ou teorização. O Conversas já anunciava isso, mas no plano literário. No Stabat a tentativa foi trazer para a materialidade cênica, corporal, esse transbordamento.
Como você vê a relação de Stabat Mater com as peças da Angélica Liddell? Pode-se dizer que ela é uma referência para o seu trabalho? Que artistas de teatro você tem como referência neste momento?
Referência total! Eu estava a um mês de estrear o Conversas com Meu Pai e assisti Eu Não Sou Bonita na MITsp. Foi um divisor de águas. Nem sei dizer o impacto que aquilo teve em mim. A Angélica faz essa operação de unir o simbólico e o semiótico de forma magistral. Um trabalho quase barroco na linguagem, hiper construído, quase pictórico como cena e literário como dramaturgia, ao mesmo tempo que enfrenta o real do corpo, do encontro com o espectador, de forma muito arriscada. Violenta mesmo. Passei a estudar a Liddell dentro de um projeto de doutorado que, aos poucos, foi virando muito mais essa interlocução artística. Escrevo essas palavras aqui na França, para onde vim, com apoio da Fapesp, para ver os recém estreados As Costelas Sobre a Mesa: Padre e As Costelas Sobre a Mesa: Madre. Um díptico sobre seu pai e sua mãe! Sobre outras referências, me vêm Regina Galindo, Elfriede Jelinek, Romeo Castellucci, Christoph Schlingensief.
Como se dá na sua metodologia de trabalho a relação entre pesquisa acadêmica e realização artística?
Felizmente para mim é uma relação de muita organicidade. Só escolho, academicamente, temas que estão estreitamente relacionados com a prática. Na verdade, nem sei dizer o que puxa o quê! Eu tenho catarses e epifanias pessoais lendo teoria. Já chorei que nem criança assistindo palestra do Juliano Pessanha, por exemplo. Desenho coração e repetidas exclamações o tempo todo nos meus livros teóricos! (risos). Já tive pudor dessa mistura toda. Hoje aceito que é meu jeito de ir para a cena, para a dramaturgia: misturando coisas “pornograficamente” pessoais (citando Angélica aqui) e teoria pesada. Agora sobre metodologia… Não sei dizer. Nos femininos abjetos, trabalhei muito a ideia de “seminário cênico” e também “museus pessoais”. Daí surgiu a maioria das cenas. E de certa forma apliquei essas bases no Stabat. Mas é bem caótico, na verdade. Tenho cadernos e cadernos nos quais vou anotando imagens, frases, sonhos, e depois essas coisas vão decantando, saturando, e começam a encontrar uma estrutura possível. Mas nunca sei exatamente como cheguei ali. É bastante intuitivo no final e depende demais do processo.