A compaixão transgressora de Jo Clifford em O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu

por Nathalia Catharina Alves Oliveira

O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven) @Nereu Jr

A dramaturga escocesa Jo Clifford tem mais de cem peças escritas e é prestigiada em seu país, porém sua estreia há dez anos de O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu (The Gospel According to Jesus, Queen of Heaven) em uma igreja de Glasgow foi marcada por uma multidão de pessoas que se diziam defensoras da palavra de Deus e que, bastante distantes dos princípios de compaixão e tolerância, vociferavam contra Clifford, considerando sua obra uma heresia. Jo é cristã. E sua peça também, mas sob outro ponto de vista, distinto da interpretação religiosa dominante do evangelho. Ao longo desses dez anos, a peça, com direção de Susan Worsfold, foi apresentada em bares, hotéis, restaurantes, mas dificilmente conseguiu pauta nos teatros de seu país. Temos a chance de ter Clifford conosco na MITsp e sobretudo em um espaço público, comum: o Centro Cultural São Paulo.

Não acredito ser possível fazer uma leitura desta obra a partir de dicotomias fáceis e de uma lógica binária que rege em geral a catequese religiosa. Nesta autoficção narrada em cruzamento com a narrativa da vida de Jesus, somos convidadas e convidados a nos sentar à mesa junto a Jesus, Rainha do Céu, compartilhando o pão e o sangue de Cristo; dela, Jesus, Rainha; dela, Jo Clifford; dela, trans; dela, pessoa comum. À mesa, coberta de velas, folhas, pão e vinho, temos logo ao início uma espécie de sermão de Jesus de Nazaré, mas o tom solene é quebrado pela inserção de um trecho da biografia de Clifford que narra sua expulsão de casa quando assumiu ser transgênero. Jo Clifford faz uma releitura da história de Jesus a partir de sua história, trazendo ainda trechos de outras histórias, por exemplo, a compaixão de uma travesti que subia a Consolação e que foi a única pessoa que se dispôs a ajudar um homem que estava na rua. Igualmente, Clifford refaz sua própria biografia a partir de sua leitura da história de Jesus.

A atriz e dramaturga é sagaz ao não se valer do cinismo ou da ironia. A estrutura dramatúrgica constrói uma crítica a partir do ponto de vista da aceitação, da compaixão, perdoando até mesmo os assassinos, relembrando que a única coisa que eles têm é seu próprio ódio e que quando o perderem, não terão mais nada. O que Jo acaba fazendo é transgredir não os princípios cristãos, mas a narrativa ideológica do evangelho que impera como versão oficial. O interesse da dramaturga parece ser não só o de discutir a transfobia que marca parte imensa de nossa sociedade – e que sem dúvida é assunto crucial da peça –, mas ainda deflagrar a intolerância e a necessidade de compaixão de uma forma mais ampla. Clifford vai de sua autoficção para a realidade comum de todas e todos, aproximando, por exemplo, a crucificação de Cristo a nossas crucificações cotidianas no trabalho, na rua e nos pergunta: “Quando pararemos de pecar?”.

A encenação e a construção da dramaturgia vocal e física da atriz revelam uma atuação tanto dramática, quanto cotidiana. A entonação de sua voz cria curvas sonoras, pausas e suspensões que nos transportam para dentro de sua história. Estamos diante de uma representação cênica e igualmente em comunhão ao redor da mesa de Jesus, Rainha do Céu. Por fim, parece que Jo retoma um princípio primordial do acontecimento teatral, uma comunhão, um espaço de escuta comum e compartilhado, tendo desde o início nos dito que o que queria ali era contar uma história e não fazer sermões. Distante de ser uma afronta à fé, Jo Clifford evidencia a transgressão que a ortodoxia religiosa fez do evangelho. A MITsp apresenta ainda a versão brasileira de Renata Carvalho do Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu, com direção de Natalia Mallo. Diante da terrificante transfobia responsável por inúmeros crimes no Brasil, é sem dúvida indiscutível sua pertinência.