Artista em foco
por Clóvis Domingos e Francis Wilker
Em PRA FRENTE O PIOR a Inquieta Cia cria no espaço uma atmosfera distópica. Em outros trabalhos seus também podemos identificar esse “fim de festa” se inscrevendo em cena, como em Vagabundos ou Fortaleza 2040. Como você percebe o lugar da distopia no seu trabalho?
Do que se passa pelas curvas desses trabalhos só se exibem na maioria das vezes os restos dos corpos, o que sobra do desgaste, o que se salva do acidente, o rascunho do plano ou a execução imprecisa de uma engenharia importante. Os desejos desses projetos vivem a poucos metros uns dos outros, partilham o mesmo enunciado por diferentes gestos, andar de um lado para o outro de mãos dadas, lançar uma trouxa de roupas para o alto, lançar entulhos para o alto, saltar em grupo até acabarem-se as forças, acelerar uma moto até acabar o tempo da cena, narrar um texto de palavras roubadas, narrar um texto de ações aleatórias, correr nu. Em PRA FRENTE O PIOR nós performers seguimos em frente, apesar da trincheira, preferimos que nada dali saia, e o mínimo que consentimos que saia, um olhar disperso ou uma mão solta, é pela curva que sai. O desvio é o lugar onde perdemos o ponto de referência, onde olhamos em frente e não achamos o fim, provavelmente, nós, desviados do centro, passamos a narrar algumas distopias, acentuamos algumas palavras, desordenamos conjuntos hierárquicos, reconfiguramos endereços, acionamos alarmes. É por esse motivo que esse movimento de trabalhos artísticos em que tenho me engajado permanece uma ação torta, mal-educada, perto de ser uma sinalização que aponta outras direções.
A imagem de seis pessoas de mãos dadas em Pra Frente o Pior evoca diferentes modos de organização coletiva. Se por um lado temos a atmosfera distópica, por outro, a ideia de um mundo que só é possível se pensado coletivamente é uma afirmação contínua nessa obra e também em outras criações suas. Em Vagabundos ou em Bando de Pássaros Gordos, a coralidade é um importante procedimento poético. Quais os sentidos éticos, políticos e estéticos que você atribui a coletividade no seu trabalho?
Pronto, o bando que se inventa na cidade onde moro, em Fortaleza, fica entre a elite protagonista e os grupos miseráveis, esses que se interessam pelo reduto do acontecimento, mais do que seu anúncio solista. Penso: Como embalar para o alto um grupo de pessoas vorazes por suas buscas, e torná-las gigantes, não uma, mas todas em suas múltiplas dimensões? Talvez nesse sentido seja impulsionada aí uma ética diferente daquela escrita na constituição brasileira, mas a da existência das coisas comuns, dos pedaços de ação que se tornam possíveis de apresentar na coletividade, na multiplicação de hipóteses do que pode acontecer.
No espetáculo PRA FRENTE O PIOR não há um protagonista. Em Bando de Pássaros Gordos e Vagabundos (trabalhos em que fiz a direção) também não. Fortaleza 2040, apesar de um corpo grunhir sozinho no centro do palco, não há, ainda assim. Não há um, há vários. Essa dança de muitos embriões de ações comunitárias fazem sentido onde, num desenho da história da arte, os diretores, atores principais, escritores, primeiros bailarinos e solistas protagonizam largos espaços que acabam confundido alguma especificidade com diferença de nível de poder.
Me interessa a reunião de diferenças, o não se acostumar com aquilo que já se sabe, descobrir procedimentos de trabalho e aprender a inventar com o risco de não dar certo. Isso se dá em grupos grandes de pessoas, que é o formato esfumaçado que eu desejo continuar trabalhando como poética no Teatro, na Dança e no Cinema.
A Inquieta Cia mostra-se interessada em outros arranjos produtivos na sua forma de organização. Em PRA FRENTE O PIOR por exemplo, ninguém assina uma direção/encenação do trabalho. Nesse sentido, como você compreende a noção de autoria nas suas criações?
A Inquieta Cia. reúne artistas engajados numa composição coreográfica cotidiana de assuntos ligados à vida, às imagens, aos diversos finais de mundos, aos procedimentos cênicos, à performance e à elaboração de planos estratégicos para aprender a dialogar. Esse grupo de pessoas não é liderado por um dos membros, mas pela situação a que cada trabalho nos leva; quase sempre nosso caminho é construído de dúvida e observação, ação e pausa. Não somos um grupo de teatro. Não somos também, uma companhia de dança. Mas fazemos Teatro e Dança. Entendemos que os modos de operar da Inquieta vão surgindo como se fossem um texto metafórico que imagina, compara, inventa e compartilha. Em PRA FRENTE O PIOR assim como no grupo, não temos diretor e somos impulsionados a trabalhar num movimento constante de atenção, despreocupados com o criador ou proponente de cada coisa, o trabalho vai seguindo com seu projeto contra às convenções de respeitabilidade moral, exposto nas ações de insistência que geram a sua dramaturgia.
Penso que a autoria tem a ver com parir, vários elementos formam uma gestação: interferências, memórias, conexões biológicas, invasões cognitivas, força, ajuntamento de pessoas; enquanto alguém se disponibiliza para ligar tudo isso, e nesse caso essa pessoa pode ser chamada de autora, não dona, afinal muitas contribuições fazem parte dessa formação. Tenho atuado bastante como diretora, até mesmo como professora na universidade, e venho me posicionado num contexto de orientar, direcionar projetos. Nessas experiências, vou aprendendo a notar sinais que deformam os modelos de trabalho autoritário; formam-se outras texturas e vou me aproximando delas.
Vocês iniciam o PRA FRENTE O PIOR dizendo: “O que você vai ver é exatamente o que você vai ver”. A frase opera como um antídoto a qualquer expectativa de uma narrativa linear ou fábula para o trabalho. Essa operação se mostra presente em praticamente todas as suas obras. O que interessa a você é a presentificação da ação como eixo motriz de sua poética? Qual perspectiva ganha o corpo no seu fazer?
Vivemos redundantemente o agora. Não tenho me interessado pelo esquema futurista para o lugar onde desenvolvemos nossos planos. Desejo a cena que segue seus ímpetos de urgência, seus rasgos de onde escorrem as palavras. Pelo presente conversamos para esticar os argumentos, falar para notar que ainda estamos aprendendo, produzir ações que nos levantam dos nossos assentos, que nos fazem avançar.
Nos projetos em que trabalho, os corpos vivos, subalternos, com seus latidos esganiçados e suas vozes sibilantes inarticuladas, gritam sob o controle de uma chefia ocidental, atuam com os ossos ressequidos mas enriquecidos de vitalidade numa íntima relação com o confronto em todos. Assim pulsa a vida. A guerra se torna uma necessidade diante das diferenças, ela brota da carne, do diálogo, dos pensamentos possíveis e impossíveis, assim como no Poema Conjectural de J. Luis Borges: “O Doutor Francisco Laprida, assassinado no dia 22 de setembro de 1829 pelos montoneros de Aldao, pensa antes de morrer“. Aqui nessa pequena abertura de poema, na imaginação, na invenção imbuída de desejo, pensar antes de morrer se torna uma possibilidade, uma alternativa, radicalizando traços de pura realidade do corpo para possíveis multiplicidades. O corpo esquematiza encontros, produz inúmeras formas de vida e, então, trava batalha. Diferente da matança, ele regula contatos das potências heterogêneas.
A concretude dos objetos e sua produção de presença também se mostram como traços que chamam a atenção nos seus projetos. Vemos colchões, caixas de papelão, cones de sinalização de trânsito e até uma moto invadirem a cena de Vagabundos. Em Bando de Pássaros Gordos, de maneira inusitada, um carro irrompe no palco. Em Fortaleza 2040, somos surpreendidos com uma fanfarra em dado momento. Como você trabalha essa “invasão” das coisas do mundo nas suas obras e seus possíveis efeitos e leituras?
A palavra invasão é muito precisa para encontrar uma reflexão do caos ressoante nos projetos que tenho atuado e as leituras são geralmente associadas aos significados das coisas, do que a própria materialidade delas. Não sei bem como falar disso, mas tem um tanto de imaginação cruzada com extrema absorção de tudo que vejo, dos lugares que vivo e isso vai me fazendo rapidamente uma artista enlouquecida de narrativas em que o tudo pode ser, se torna uma hipótese. No espetáculo Vagabundos, existe uma cena que ajuda a aproximar essa ideia, segue uma das narrativas:
De uma das saídas de emergência do teatro, uma atriz carrega um lustre achado no lixo dos fundos da casa do Senador Eunício Oliveira, localizada na Rua Deputado Moreira da Rocha, 778. Abaixo do primeiro degrau da arquibancada, descem pneus girando sobre si mesmos, sendo carregados por Leonardo William e Milton Sobreira. Longos tapetes luminosos e duas cadeiras amarelas protegidos por plásticos transparentes, uma mesa de madeira pintada de branco, dois ventiladores com hélices imóveis, mangueiras de incêndio descartadas, uma enorme árvore de Natal, um cofre, uma cama, uma geladeira azul quebrada decorada por adesivos do Grêmio Estudantil de 1989, um botijão de gás, duas sacas de cimento, sete bicicletas, três caixas de sabão Brilhante, um refletor de luz alaranjada, uma placa de trânsito roubada da Avenida Treze de Maio, uma moldura de comprimento equivalente a altura de Sérgio Cavalcante, o ator mais baixo. No mais fundo da cena, há uma mudança de casa, um trânsito de grandes e pequenos objetos, uma viagem de um estado para outro, uma espécie de rebelião de materiais que cruzam de cima para baixo, da direita para a esquerda. Uma cena do filme Rei Leão interrompe esse cruzamento, piruetas nascem no centro do palco ao som de uma vinheta do programa do Silvio Santos. Todos aplaudem. Uma moto ilumina a cena com seus faróis acesos, sua buzina insistente expulsa todos os atores da cena. Explode mais uma bomba na calçada do teatro Blackout.
A sua carreira evidencia permanentes trânsitos e contaminações, as criações nascem desses deslizamentos entre as linguagens do teatro, da performance, da dança contemporânea, e, mais recentemente, do audiovisual. Por outro, a sua atuação profissional também é marcada por esse deslocar, temos a artista, a pesquisadora acadêmica e a docente, uma vez que atua pedagogicamente em oficinas, cursos de graduação e residências artísticas. Gostaríamos que falasse um pouco sobre o que te move, como se move e o que faz mover nesses trânsitos.
O que me move é a soma do desejo com a revolta. Isso se move numa rebelião que acontece do modo mais simples: o encontro. Reunir para trabalhar, propor, pesquisar, executar, depravar e compartilhar. Isso move o olhar, move o corpo, os órgãos, as perspectivas do tempo e das ideias.
Meu percurso nunca foi solitário e isso foi gerando trabalhos do mesmo modo, nada solitários, o que aos poucos foi me fazendo entender uma diversidade de produção que é atravessada pela amizade, pelas influências de pessoas próximas que me apresentam outros mundos que se cruzam de modo orgânico com meus percursos.
Entendo que o movimento da criação, da composição, se espalha por todos os jeitos de trabalhar. Não é possível, por exemplo, mergulhar num processo pedagógico de troca e invenção, sem que seja produzida uma dramaturgia a partir dos elementos que o constituem.
Torna-se difícil olhar para um título como PRA FRENTE O PIOR e não criar alguma associação com o cenário político brasileiro dos últimos quatro anos. Você é uma artista, mulher, nordestina e de ascendência indígena. Como tem percebido os horizontes e limites para um corpo com a sua história e lugar de fala nos nossos dias e como essas questões atravessam a sua criação?
Uma mulher chamada Andréia, assim como muitas outras, vive no Brasil. Ela olha para ele, e ele lhe escapa. Aos poucos, sua habitação se torna uma construção desesperada. Ela sou eu. Um corpo que pode ser chamado de doente e suas intervenções acontecem sem anestesia, basta notar o quão bruta é a sua presença. Torna-se zona de fronteira, zona móvel de perigo, zona ilegal, zona clandestina. Este corpo cearense separa e une, une e separa sentidos, não como polaridades ou oposições, mas como invenção cultural feita de poderes, espaços, símbolos, diferenças. Obras artísticas coletivas. A subjetividade nordestina necessita mover interstícios e nesse movimento gerar outros fluxos num tempo de mudança contínua.
Estamos aqui para escrever um tipo específico de relato, sem palavras. Algo que despiste os olhares fixos da nossa ação. O seu potencial de existência se dá, de alguma forma, no oferecimento desta presença, aos que pretendem pensar sobre o corpo enquanto bomba de propulsão às sociedades que estamos construindo ao viver.
Por e para aqueles que vivem aqui, agora.
Você defendeu sua dissertação de Mestrado intitulada Performances e Políticas de um Corpo Criminoso no Programa de Pós-Graduação em Artes da Universidade Federal do Ceará. Nesta pesquisa você pensa a especificidade em que o corpo, como política e materialidade do sensível, não concorda com a norma ou com as imposições opressoras. Como você analisa essa possibilidade de desobediência do corpo frente às estruturas de poder? Como se dá a relação entre pesquisa acadêmica e prática artística? E mais: quais seriam as estratégias para que o corpo, no campo artístico, não perdesse sua condição de cometer delitos e infrações?
Desobedecer esses formatos é inventar relevos e descobrir outros modos de viver e se relacionar com as normatizações impostas pelo Estado. Hoje, é difícil pensar em crime sem pensar no projeto civilizacional da modernidade. Não que o exercício da punição sobre indivíduos desviantes já não tivesse existido, muito e de formas variadas, porém, é com a definição e refinação da jurisprudência no processo de instauração de repúblicas por todo o mundo, incluindo a criação de um campo de direito internacional, que se dissemina também a política de regulação dos corpos e os valores pelos quais se medem e se julgam as suas conformações ou deformações em relação à ordem autoritária.
Se crime é ato, criminoso é o corpo ao qual a ação é imputável. Definir um corpo como criminoso é defini-lo como punível, qual matéria de privação, tortura ou pena capital, qual matéria da punição não é outra, senão os corpos e as condições às quais estes são sujeitos. Não há nesta definição outro desígnio que não o da instauração e manutenção de uma ordem humanista, com toda a sua história de patriarcado, capitalismo e colonialismo. Fazer do crime resistência à punição é perturbar sem fuga nem antagonismo a autoridade destas forças. É desenvolver no seu seio a irregularidade que tanto menosprezam e, com isso, potenciar a existência de vidas cujo modo está por dar. Crime pode potencializar a vida por vir, perturbação de uma humanidade que se pensa o centro de tudo. Então , produzir arte no corpo é produzir um corpo criminoso, desobediente ao que se espera dele.
As práticas artísticas produzem motivos para gerar pesquisas, fomentar curiosidades, reinventar o ensino, descentralizar a escrita e colaborar com outros processos de construção cultural, social e histórico. Fico na torcida para que a academia e as artes passem a se compreender como vizinhas e que haja uma intimidade capaz de dissolver o que estiver endurecido de ambos os lados.
Quanto às estratégias para que o corpo, no campo artístico, não perca sua condição criminosa, para mim estão na continuidade dos trabalhos, no transbordamento das ações, no potencial da poética. A lei continua rígida, a constituição da República Federativa do Brasil permanece no mesmo lugar, sendo assim, basta um sacolejo brusco, e já estaremos fora delas. É assim que seguimos, depravados, desviados, destituídos.
Em vários trabalhos seus e com a Inquieta Cia há a busca permanente por experimentações estético-políticas nos espaços abertos da cidade. O que interessaria a vocês nessa relação entre corpo, arte e territórios urbanos? Há um trecho de um texto seu em que consta a seguinte afirmação: “As vértebras dessa Fortaleza estão visíveis, embora cobertas por camadas de uma massa cinzenta, que endurece e é capaz de permanecer ali por anos e anos”. O que poderia provocar a arte no concreto da cidade? Como a vivência na cidade reverbera nas suas criações?
A arte pode martelar o concreto, se aproveitar dos seus equipamentos para saltar, escalar, deslizar, se esconder. Artistas e engenheiros, cronistas sociais e turistas ficam com frequência curiosos sobre o excesso de cimento que banha as cidades, com os viadutos e prédios cuja durabilidade é assegurada por cinco gerações. O chão cinza, que se propõe resistir, oferece sua materialidade opaca ao corpo que simplesmente repousa.
Cresci em um bairro chamado Mondubim, na periferia da cidade, em frente à uma lagoa poluída e misteriosa. Todos os dias eu caminhava nas suas redondezas para pegar o ônibus até a escola, depois de um tempo, para o trabalho, e logo para o ensaio e então para as apresentações, enfim, outros caminhos. Mudei de endereço, mas esses percursos distantes pela cidade foram permanecendo nos projetos, nas obras, nas danças, nos contos.
A cena expõe as incongruências da rua. As regras são dificilmente estabelecidas. O que importa, no caso, é que o acontecimento esteja à vista, ou aquele programa que alguém foi intimado a cometer. Todo um sistema de dramas, de natureza geralmente roubada da cidade. As invenções continuam, de modo que a representação jamais acabará.