Pedagogo em jogo
por João Fiadeiro e Maria Fernanda Vomero
Esta conversa, descrita abaixo, tem início em um encontro. Uma colisão, como João costuma dizer – e eu gosto muito desse termo. Um encontro virtual, na verdade, mas não menos caloroso. Alguém já lhe havia comentado: “Ela é curadora das Ações Pedagógicas da MITsp”. Então, quando me apresentei, pude dizer-lhe apenas: “Oi, sou a Maria Fernanda”. Agora, sou eu quem lhe faço as vezes:
— Este aqui é o João. João Fiadeiro, português, nascido em Paris (durante o exílio dos pais, ativistas políticos), coreógrafo e pesquisador através da arte. Sim, através da arte. O João costuma dizer que tudo o que faz como artista serve para investigar o “estar vivo” e reconhecer as propriedades e as possibilidades que existem a cada momento de colisão com o mundo. Notem bem: de novo, o termo recorrente “colisão”. Pois o João é o pedagogo em foco da edição 2020 da MITsp.
(João está à beira do texto, no canto da página. Súbito me olha e diz:)
João: A pedagogia tem um lugar muito presente em meu trabalho artístico, porque considero a formação e investigação como plataformas para pensar junto, ou seja, todas as questões que me ocupam como artista são questões que tenho que confrontar com os outros, cá para fora. E só no ato do encontro, da colisão com outras pessoas e com colaboradores, é que consigo realmente considerar o que estou a sentir, a pensar. Vejo o gesto de transmissão como um gesto de partilha e amplificação de um conjunto de afetos, inquietações e inclinações que me interessam. Essa postura mais pedagógica passou a ser inevitável no instante em que percebi que, nas primeiras semanas de trabalho em estúdio, no início de uma criação artística, eu era sempre confrontado com a expectativa natural dos bailarinos ou dos performers em querer saber qual a direção, o tema, a pergunta que aquela peça traria. Me sentia muito incapaz de fornecer essa informação, já que estava exatamente ali para que eu próprio descobrisse e identificasse o que me afetava e me fazia criar. Para lidar com essa pressão, comecei a desenvolver um método de trabalho que me permitisse estar com os demais, sem ter que explicar-lhes ou ilustrar o que faria. E isso começou a constituir-se como estratégia de encontro e transformou-se em modo de ensino ou de relação com os conteúdos e as questões que me afetam.
— No entanto, eu lhe peço que explique seu método de Composição em Tempo Real…
(João já mudou de lugar. Está nas entrelinhas, mas também nas aspas, nos pontos de exclamação que não querem aparecer no texto, nas reticências.)
João: Composição em Tempo Real (CTR) foi uma designação que criei, uma estratégia de trabalho, um modo de me relacionar com o problema da composição e da improvisação. Esse termo – “composição em tempo real” – traduz exatamente o que se propõe a fazer: pinçar a decisão a partir de uma perspectiva organizada e composta, mas em confronto com o tempo real, o tempo presente – isto é, são dois princípios que se anulam ou que se contrapõem. A composição pressupõe um olhar de fora, um suspender prévio, e o tempo real impede esse olhar de fora, esse saber prévio. Nessa tensão que se cria entre essas duas forças, dá-se o gesto – que chamo de Composição em Tempo Real. É um gesto que emerge como consequência, uma colisão entre esses dois conceitos, e não um gesto feito à medida de um desejo prévio. Ou seja, o acontecimento acaba por traduzir uma relação entre a força do que tenho para oferecer e a força daquilo que o tempo concreto real me obriga, me restringe. Proponho, assim, uma mudança de paradigma. Tendemos a reagir àquilo que nos interpela de modo habitual, ou seja, recorrendo a nosso repertório de saber, sejam eles culturais, genéticos ou biológicos. A CTR propõe uma suspensão das certezas para que a dúvida se instale, e o espaço de questionamento do desconhecido se transforme numa força de trabalho e num lugar de acolhimento. Esse movimento do “parar” (a fim de “re-parar”) é muito difícil porque nosso corpo está condicionado e desenhado para replicar modos de reação e relação pré-definidos, que foram sendo acumulados por nossa experiência de vida. Enquanto “compositores em tempo real”, não temos outra possibilidade a não ser aceitar que não sabemos, e essa aceitação cria um estado de disponibilidade. Passamos a identificar outras possibilidades que estavam anestesiadas ou camufladas por detrás de nossos hábitos. A prática da CTR, por ocorrer em estúdio, possibilita a repetição, a insistência e a persistência e, por isso, uma descoberta lenta daqueles que são os limites das nossas relações, das potências que nossas relações podem gerar. Isso permite-nos testar corpos e presenças que, de outra maneira, não seriam possíveis.
(João agora dança entre as letras. Choca-se com elas. Fico no espaço em branco. Sinto que vamos desaparecer. Ou esparramar-nos. Ou ainda invadir todo o espaço de texto, virar texto, virar uma palavra gigante: colisão.)
— João, me sinto em perigo, e a sensação é boa! Lembrei-me de que há outra expressão que você adora: “corpos em perigo”. O que você entende por “corpos em perigo”?
João: Um corpo em perigo é um corpo que não se acomoda e que se mantém atento, e essa atenção permite desenvolver uma sensibilidade diante do presente, daquilo que de fato está a acontecer. Estar em perigo é uma espécie de condição sine qua non de pensar o corpo na arte, como performer e como espectador. Não concebo uma arte que não me ponha em perigo no sentido, que não questione minhas convicções e minhas convenções. É, assim, uma posição artística, cívica e ética de não me deixar capturar por nenhum tipo de estrutura de poder (sobretudo aquelas que eu próprio carrego) que me impeça de ser sensível; essa parece-me ser uma condição necessária para nos mantermos lúcidos e atentos e presentes. Ser sensível. É claro que isso é difícil fazer em ambientes que estão domesticados ou protegidos como se fossem cápsulas higienizadas, mas nossa obrigação, como artistas e ativistas, é de deslocar, mesmo que por milímetros, nossas certezas. Pronto. E nesse sentido todo o trabalho que desenvolvo visa pôr-me em perigo, porque é o perigo que me mantém atento, presente e atual.
Esse é o maior desafio que temos: manter-nos atualizados. Essa atualização é o que possibilita um reconhecimento do nosso entorno e do nosso “intorno” numa relação de ir e voltar, de dar e receber e retribuir, que se processa no encontro entre nós e nós mesmos, o meio ambiente e os sistemas (ecológicos, sociais, políticos) com que interagimos. O grande desafio é como permanecemos atentos e como a avalanche de informação, sensações, de forças que nos atravessam é acolhida como matéria de trabalho, e não como formas de imposição ou de rejeição. Sintetizando: como encontrar, na nossa presença e participação no mundo, uma qualidade que não seja contra, mas com, de maneira que minhas posições possam com-por com outras posições em vez de contra-porem?
— Você teve a experiência de com-por com outra Fernanda, a antropóloga Fernanda Eugénio, com quem fundou em 2011 a plataforma AND_Lab. E um dos resultados da colisão entre vocês foi o conceito “secalharidade” – a qualidade de acolher o “se calhar…” –, que nomeia “o modo de operar e habitar paisagens comuns”, fonte de diversos projetos e textos*.
João: Sim. O conceito “secalharidade” – que também deu origem a uma conferência performática em Lisboa, no ano de 2012 (e que se desdobrou em uma enorme passeata pública contra a austeridade e a crise em Portugal) – propunha-se como prática de convivência assente na substituição do controlo e da manipulação por uma ética do manuseamento suficiente, com o objetivo último de transferir o protagonismo do sujeito para o acontecimento. O conectivo AND (e) resultou do encontro entre duas inquietações transversais – “como viver juntos?” e “como não ter uma ideia?” – e entre dois modos de pensar-fazer – a “minha” CTR e a “Etnografia como Performance Situada” da Fernanda Eugénio. A força desse encontro assentou na descoberta recíproca de que ambos vínhamos, há anos e em nossas respectivas áreas, partilhando uma mesma paisagem de inquietações acerca do problema da representação e da interpretação. Os conceitos-ferramenta que fui desenvolvendo com Fernanda, ao longo de nossa colaboração, estão ainda muito presentes, tendo sido absorvidos como léxico e vocabulário que enquadram a prática da Composição em Tempo Real atual, servindo como lugares de intermediação e mediação da experiência à escala-corpo (que sempre caracterizou a CTR) e à escala infinitesimal das “pensações” que desenvolvemos durante nossa colaboração.
(Neste momento, caminhamos sobre nossos nomes na abertura deste texto.)
— E veio a pertinente reflexão sobre a autoria.
João: A questão da autoria na criação artística passou a ter outro peso depois da experiência com a Fernanda. Afinal, como posso assumir posição de autor perante uma consequência que, na verdade, não me pertence – porque é uma consequência de uma colisão, de um encontro entre diferentes forças e que não controlo? O modo com que estou a lidar com isso agora é dizer que aquilo que está em causa não é a erradicação do autor mas a diluição da sua influência no acontecimento. Aquilo que me apercebi é que na criação artística a tradução e a circunscrição de um afeto (uma inquietação, um desassossego) é sempre singular, íntima e, de certa forma, intransmissível (no sentido que me ocupa de uma forma que não consigo nomear). Num processo de improvisação (mais próximo do que experimentamos na convivência quotidiana), é perfeitamente possível que diversos “afetos” e forças ocupem um mesmo espaço-tempo. Mas no processo de escrita (coreográfica ou outra) não posso esperar que o outro se afete com o que eu me afeto. O que posso é encontrar modos de partilhar com o outro esse afeto (a CTR é um deles) de forma que se torne um território comum, permitindo assim que um grupo de pessoas trabalhe junto sem que a figura do autor se transforme em figura de autoridade. Em arte penso ser possível conviver com essa contradição entre tentativa de abdicação de controlo e assinatura de um trabalho. Esta é uma formulação que fui desenvolvendo a partir de 2015 (momento em que retomei a prática coreográfica depois de uma suspensão de sete anos) com Carolina Campos e Daniel Pizamiglio, dois artistas-investigadores muito próximos, com quem criei as peças O que Fazer Daqui para Trás (2015) e Ça Va Exploser (2020), que serão apresentadas no festival.
— Essa combinação entre autoria e afeto partilhado me recordou o poeta Fernando Pessoa e seus heterônimos. Uma pergunta mais íntima, então: como você se sente agora, João?
João: Inquieto. Ou desassossegado, como diria o Pessoa, com o problema da relação que desenvolvo com o espectador: como posso, dentro daquilo que a arquitetura teatral me permite, colocar o espectador numa posição de testemunha ou de cúmplice e não de voyeur. E, sobretudo, como dar ao espectador um espaço-tempo menos impositivo e oferecer-lhe uma proposta que não o obrigue a uma interpretação, mas que sugira relações; uma proposta em que minha presença ou a presença dos performers com quem trabalho sirva, sobretudo, para o espectador imaginar, ativar seu imaginário. A arquitetura do teatro é bastante castradora, pois as cadeiras já estão à espera de uma maneira pré-definida de relação e fruição do espetáculo, condicionando muitíssimo as possibilidades de diálogo entre a proposta e quem a observa e a recebe. Por isso, sempre que posso, tento jogar com a elasticidade e a plasticidade das expectativas do espectador. Em alguns trabalhos, funciono exatamente com a estrutura que me é oferecida e olho para o teatro como se fosse um site-specific; noutros, preciso “destruir o teatro” e organizar o lugar do espectador. Inquietação muito constante e presente. Gosto da ideia de considerar o espectador um visitante, que tenha a possibilidade de se deslocar (como acontece em um museu ou galeria) e ser responsável pelo modo com que utiliza seu tempo e sua atenção. Seria este meu sonho: que o espectador se dilua no meu corpo. E inversamente.
(Colidimos, João e eu, com Alberto Caeiro, o guardador de rebanhos que habitava Fernando Pessoa. E Caeiro nos diz: “O mistério das cousas? Sei lá o que é mistério!/ O único mistério é haver quem pense no mistério./ Quem está ao sol e fecha os olhos,/ Começa a não saber o que é o sol/ E a pensar muitas cousas cheias de calor./ Mas abre os olhos e vê o sol,/ E já não pode pensar em nada,/ Porque a luz do sol vale mais que os pensamentos/ De todos os filósofos e de todos os poetas.”)