Por Julia Guimarães
Em um dado momento do espetáculo A História do Teatro Ocidental Coreano, um personagem tão inusitado quanto carismático – um sapinho “bebê” feito de origami – nos apresenta uma imagem-síntese que me provoca a refletir sobre diferentes acontecimentos desta nona edição da MITsp. O bebê origami comenta com seu criador, o artista sul-coreano Jaha Koo, que, juntos, eles poderiam desdobrar a história. E, assim, fazer com que ela volte “ao seu papel quadrado original”.
Embora a metáfora contida nessa imagem funcione como um sopro de utopia – ao propor um pensamento sobre a história da Coreia do Sul desdobrada de seus domínios coloniais – ela também engendra uma contradição. Um papel dobrado nunca volta à sua forma original. As marcas das dobras permanecem, ainda que isso não impeça que um origami novo seja construído. Em outra cena desta mesma obra, Jaha Koo se questiona sobre que tipo de criador de teatro ele teria sido “sem a colonização cultural da Coreia por forças estrangeiras”. Mesmo ciente da impossibilidade de responder à própria pergunta – já que o passado, obviamente, não é algo que se apaga – resta em cena a tentativa de encontrar outras dobraduras para aquilo que é narrado. Por exemplo, ao questionar as tradições que ficaram de fora quando aquilo que se entende por “História do Teatro Coreano” passa a significar tão somente uma noção vinculada ao paradigma ocidental1.
É a performance de um impasse semelhante que aparece em outros espetáculos da mostra. De um lado, a consciência sobre a impossibilidade de se desprender totalmente de um passado colonialista, que surge reiterado no presente pelo looping incessante da colonialidade. De outro, o gesto artístico de subverter seus rastros e perpetuações. É em diálogo com as respostas cênico-poéticas encontradas para lidar com tais problemas que tentarei atravessar minha experiência como espectadora dos primeiros quatro dias de programação da MITsp2.
A começar pelo artista em foco desta edição – o já citado Jaha Koo – seria possível identificar certa tentativa de sublinhar esse tipo de contradição no próprio título do projeto que ele trouxe para a mostra. Batizada Trilogia Hamartia, ela faz referência ao famoso termo grego que designa “falha ou defeito trágico”. Aqui, o flerte com algumas das principais bases da tradição teatral no ocidente é assumido no próprio título.
No entanto, ao contrário da perspectiva grega, em nenhum dos espetáculos da trilogia ocorre a típica transformação que estaria no âmago da falha trágica, na qual o protagonista oscila “da prosperidade à adversidade”3, da fortuna ao infortúnio. Nas montagens criadas por Jaha Koo, a hamartia é sobretudo coletiva, fruto direto do imperialismo linguístico (Loling and Roling), econômico (Cuckoo) e teatral (A História do Teatro Ocidental Coreano), aos quais o seu país foi historicamente submetido desde o começo do século passado. Além disso, ao contrário dos princípios dramatúrgicos que tradicionalmente permeiam o gênero da tragédia, o trabalho do sul-coreano persegue uma escritura artística cotidiana e antiespetacular, na qual a vida do performer surge entrelaçada a contextos mais amplos relacionados à história da Coreia do Sul.
Em Loling and Roling (2015), primeira parte da trilogia, a crítica ao chamado imperialismo linguístico se traduz por uma imagem tão emblemática quanto literal. Para abordar o tema, Jaha Koo projeta em vídeo cenas da chamada “cirurgia da língua presa”, procedimento aplicado em crianças sul-coreanas para que possam pronunciar o R em inglês. Aqui, a violência simbólica da dominação colonial adquire materialidade: é a própria língua que surge exibida e mutilada na tela do cenário. Amplificada pela projeção, a imagem serve, ao mesmo tempo, como índice e como símbolo da dominação, ao explicitar a absurda pressão existente na sociedade sul-coreana para que se aprenda “corretamente” o inglês.
Esse procedimento, por sua vez, remete a um dos traços mais marcantes nas criações do performer. Trata-se da tentativa de produzir – com o uso de vídeos alterados em seu ritmo, cor e textura – uma espécie de dramaturgia da edição. Nela, o trabalho artístico consiste, em boa medida, no estabelecimento de conexões e enquadramentos sobre aspectos pré-existentes da realidade. Tal característica pode ser vista, por sua vez, como emblemática do “gênero” denominado palestra-performance, ao qual o artista recorre para construir sua trilogia. Nesse tipo de dramaturgia, a forma estética de sua crítica social surge moldada por princípios da colagem, assim como pela sobreposição de diferentes contextos e camadas de sentido.
Nesses e em muitos outros aspectos, as obras de Jaha Koo apresentadas na MITsp se aproximam de uma estética comumente associada ao teatro europeu contemporâneo. A própria base de trabalho do artista é a plataforma Campo, sediada na Bélgica. Em conversa após o espetáculo4, o performer afirmou que seu trabalho é, de fato, bastante europeu. Nesse sentido, a questão apontada no início deste texto poderia desdobrar-se em outra: como compreender a crítica esboçada em Loling and Roling – e também nos outros trabalhos da trilogia – quando está posta de saída a contradição entre criticar a colonialidade sem, contudo, abrir mão da gramática estética do colonizador?
Embora não haja resposta simples para essa questão, as reflexões éticas de Jaha Koo a esse respeito estão presentes, a meu ver, em sua própria dramaturgia. Em um dado momento de Loling and Roling, o artista nos conta que o principal motivo para ele amar e aprender inglês não é outro senão o de “amar meu país, a Coreia do Sul, e informar a virtude do idioma, da cultura e da tradição coreanos”. De algum modo, o que vemos em cena é a presença de um artista que busca atuar como uma espécie de mediador de mundos, a fim de que sua crítica se amplie e ressoe por diversos territórios.
Em consonância com os impasses culturais que atravessam suas criações por dentro e por fora (tanto em sua forma artística quanto nos circuitos de financiamento e exibição que a circundam), o tríptico de Jaha Koo também dialoga, ainda que indiretamente, com um dos legados culturais mais influentes para se pensar nos históricos conflitos existentes entre colonizadores e colonizados. Trata-se do famoso manifesto antropófago brasileiro, cujas ideias aparecem em uma das cenas mais instigantes d’A História do Teatro Ocidental Coreano (2020), que encerra a trilogia.
Nela, alguns princípios estético-filosóficos do manifesto se metamorfoseiam em uma personagem extraída do teatro folclórico sul-coreano, denominada Bibisae. Misto de “dragão e pássaro, com cara de duende”, esse ser mitológico usualmente representado no teatro tradicional pelo uso de máscaras protagoniza o momento mais fabular e fantasioso da trilogia. Com seu rosto cobrindo toda a tela projetada no palco, Bibisae se apresenta como um ser responsável por “comer tudo no mundo”, a fim de fertilizar o futuro com suas próprias fezes.
“Comer, absorver, digerir os inimigos sagrados. Historicamente. Socialmente. Teatralmente. Até que tudo seja purificado e um futuro com novas possibilidades, concebido”. Em tom profético, o ser mitológico que desperta dos rincões do teatro folclórico coreano atualiza o programa antropofágico do modernismo brasileiro. A considerar a perspectiva dos três trabalhos reunidos na trilogia, é possível pensar que, em alguma medida, todos eles também operam certa “deglutição” da cultura europeia, a fim de “digeri-la” sob a forma de uma arte vinculada a aspectos culturais da Coreia do Sul.
Ponto ápice do tríptico apresentado por Jaha Koo na MITsp, essa passagem também se destaca por esboçar uma espécie de ruído, ou estranhamento, quanto à estética desenvolvida pelo sul-coreano até ali. A cena funciona como uma espécie de delírio do documento, momento em que certo minimalismo cênico, linearidade rítmica e coerência discursiva característicos da palestra-performance contemporânea encontram outros e inusitados percursos. Nesse entrelaçamento, que em si pode ser visto como antropofágico, a contemporaneidade europeia se hibridiza com a tradição sul-coreana e com o modernismo brasileiro, sob a forma dessa figura folclórica.
É certo que, para além de Bibisae, a trilogia de Jaha Koo se permite conceber uma série de outras invenções que dialogam com o passado e o presente da cultura de seu país. Além das referências à técnica do origami, presente no empático sapinho-robô, as estrelas que dão nome à segunda obra da trilogia, Cuckoo (2017), são as famosas panelas de pressão sul-coreanas usadas no preparo de arroz.
“Hackeadas” por programadores com quem Jaha Koo trabalhou na construção da obra, as panelas contracenam com o artista, conversam entre si e até cantam músicas, fazendo da peça, em alguns momentos, uma espécie de musical épico-robótico. A presença das panelas em cena (uma delas inclusive retorna na derradeira montagem do tríptico) poderia remeter tanto às inúmeras pressões vividas pela sociedade sul-coreana – fruto das diferentes colonizações a que foi historicamente submetida por Japão e EUA – como também a todo um imaginário tecnológico que atravessa a cultura dos países do conglomerado dos Tigres Asiáticos.
A própria interlocução de Jaha Koo com uma panela no palco sublinha o tema central de Cuckoo: a solidão de jovens sul-coreanos. Em sua palestra-performance, o artista nos conta que o aumento no número de suicídios na Coreia do Sul estaria diretamente relacionado à chamada Crise Asiática de 1997, sobretudo em decorrência de uma série de restrições impostas pelo Fundo Monetário Internacional (FMI) naquele momento. Dentre as obras da trilogia, é nesta que o viés trágico presente no título se manifesta mais diretamente. Se, por um lado, não parece exagero dizer que o artista, de fato, critica a colonialidade com uma linguagem, em boa medida, colonial, por outro, seu teatro está igualmente atravessado por um profundo exame de sua própria cultura e de suas raízes biográficas. E é justamente quando logra hackear o funcionamento habitual de panelas, do teatro e própria arte contemporânea que a trilogia Hamartia alcança poeticamente o mesmo patamar de radicalidade que permeia a discursividade crítica de suas três obras.
1 Na peça, Jaha Koo nos conta que o desejo de criar o espetáculo surgiu quando participou de um evento em Seul que comemorava, em 2008, os 100 anos do teatro coreano, em um deliberado apagamento da história da vertente tradicional e folclórica do teatro do país.
2 O presente texto possui uma segunda parte, sobre os espetáculos Acorde rompido e Wayqeycuna [Meus Irmãos], também publicada no site da MITsp.
3 ARISTÓTELES. Poética. Ed. bilíngue; tradução, introdução e notas de Paulo Pinheiro – São Paulo: Editora 34, 2015, p. 113.
4 A conversa foi conduzida pela artista carioca Carmen Luz, dentro do eixo Olhares Críticos da MITsp.