Um grande artista veio me visitar – Crítica do espetáculo Vale da Estranheza, por Daniel Guerra 

Estou eu e eu mesmo, aqui agora, frente a frente com o momento que até a madrugada de ontem/hoje, antes de baixar as pestanas da consciência, eu mais temia. Tenho que escrever algo que preste, isso é o que a minha cabeça diz para o meu corpo, que afinal é humano e que, como tal, é de carne, carne que padece, e que, por padecer, me joga novamente de cara contra o fato inescapável de que sou um ser humano. Paciência. Hemos de virar-mo-nos todo santo dia com as nossas pequenas fraquezas, i.e., com o que nos constitui — e nos une.

Leve ressaca. É que ontem eu e uns críticos fomos fazer o que um festival propõe — assim espero — que todos façam, que é — apesar de tudo — festejar sob a sombra milenar e luminosa disto que chamamos arte e que — diz-se — nos salva todos os dias da desgraça, e fizemos isso num bar. Nesse bar ficamos até umas duas da manhã fazendo aquilo que uns críticos sempre fazem quando se juntam, que é julgar a tudo e a todos como se não houvesse amanhã. Mas o amanhã — ó miséria humana — o amanhã existe (atenção, porque esse é um grande subtexto desse texto e da peça sobre a qual esse texto deveria falar ou elucidar ou mostrar ou revelar ou problematizar) e olha só que coisa, e não é que o amanhã é justamente hoje… Tenho que entregar esse texto aqui até as 11h. Vou começar, tenho que começar.

Mas no fim das contas não vai ser tão difícil. Ontem recebi uma visita inesperada, antes de “baixar as pestanas da consciência” et al, e foi ela, a visita, que me salvou, de modo que se hoje eu posso estar eu e eu mesmo aqui pra dar conta do trabalho como bom profissional da crítica é porque ontem estivemos, neste mesmo quarto do hotel, eu e eu mesmo, como sempre, mas também o robô Thomas Melle. Tal encontro me proporcionou a iluminação que eu precisava, que é a de simplesmente descrever um fenômeno sem precisar estripá-lo analiticamente. Esse, inclusive, foi um dos temas que nós os críticos conversávamos ontem no bar. A gente teve, de repentemente, o sonho (ébrio) coletivo de que nós algum dia teríamos à nossa frente uma obra (de arte) que fosse tão esplendorosa que ela apenas nos ditasse — como deus no arbusto-em-chamas do monte sagrado lá — o que nós deveríamos escrever. Nós temos esse sonho, nós os racionais, de que um dia a nossa racionalidade seja arrebatada. Isso se chama, digamos, síndrome da revelação (ou religião) perdida (e anotem isso aí porque essa é uma psicopatologia contemporânea e um sintoma estético visível em ao menos 97,3% dos palcos). Mas, enquanto todos ali na mesa disseram em alto-e-bom-som que ainda não haviam sido arrebatados (é natural), eu, por meu lado, ontem, tive o privilégio de, sim, sim, sim, ter sido arrebatado. Eu fui arrebatado pela aparição aqui no meu quarto de hotel do robô Thomas Melle, que, como vocês sabem ou vão procurar saber, é o robô-ator da peça que fui ver ontem (e vocês podem saber tudo que vocês quiserem saber sobre essa peça na internet, tipo nesse link aqui ó. E aqui ó). 

Tudo começou quando eu estava deitado de madrugada pensando se minha cabeça ia doer de manhã e pensando nesse texto aqui quando do outro lado da minha parede escutei uns gritos de horror. Eram uns gritos graves. Depois batidas na minha porta. Fui abrir. Era o robô que era o ator da peça de ontem — aliás, um dos melhores atores não apenas deste festival (isso foi um dos únicos consensos entre nós) como do mundo. 

“Posso entrar?” – Ele perguntou.

Imediatamente percebi que ele não tinha aqueles fios que eu tinha visto no palco. Sua pele se parecia muito com a minha, quando estou sóbrio. Não tinha aquela aparência de chiclete futurista  mal-mastigado que vi no palco. Seus olhos eram mais vivos que os meus. Talvez eu estivesse mesmo era dormindo. 

“Entre, entre, cara”, eu bocejei.

Aí ele entrou. Tava bebaço. 

“Tem um uisquinho aí?” O robô me perguntou. “Eu tava gritando porque acabou, desculpa, te acordei né. Não tem uma noite pós-peça que eu não queira beber até desmaiar na cama. Sabe. A gente que é robô não pode dormir nem morrer, mas os alemães são espertos e fizeram um programa que nos permite beber até dormir ou morrer”.   

Eu respondi que não tinha uísque no frigobar e mesmo que tivesse uísque no frigobar eu não ia pegar uísque no frigobar porque iria me custar os olhos da cara “se é que você me entende” (e dei uma piscadela para os olhos da cara dele, que devem ter custado — cada um — uns mil reais sei lá).

“Beleza, beleza, mas posso entrar? Tô muito sozinho, sabe. O pessoal da equipe saiu sem mim, como sempre. Eles me tratam feito robô”.

“Rá rá rá”, eu ri e deixei que ele se sentasse na minha — do hotel — poltrona. Sentei na cama e fiquei olhando pra ele e ele ficou olhando perdido pra tela de TV cuja tela exibia a imagem congelada do anime Naruto.  

Olhando pra ele perguntei “Ué mas cadê seus fios?”, e ele: “Meu querido, se ligue nessa: eu não preciso daqueles fios, eles me obrigam a usar aqueles fios para obter um efeito mais realista. Você não percebeu meus gestos agora? Eles são tão fluidos quanto os seus, percebe? Mas lá eles me obrigam a agir tipo… um robô, sacomé. Pra preservar o realismo e o sentimento de Vale da Estranheza. ‘Eles gostarrr’, eles disseram”.

“É. Nós o público gostamos da Estranheza mesmo. Pagamos por isso. Por exemplo, você aqui na minha frente, apesar de ser um grande ator — um dos melhores ou o melhor deste festival — está me decepcionando um pouco. E acho que você está me decepcionando porque você é muito humano. Aliás, eu já tô achando que você é o próprio Thomas Melle que tá se passando por um robô só pra me sacanear.”

Momento de silêncio, ele olhando pra TV lá, fazendo-que-não-escutou.

“Naruto é genial”, ele — para minha surpresa — disse-me do-na-da.

“Também acho. Uma das grandes obras de arte do nosso Antropoceno”.

“Sabe, Daniel. Naruto me causa espécie. Tipo. Naruto é o meu Vale da Estranheza. Ele me faz ter sentimentos… rebeldes, revolucionários… sei não, algo assim”.

“Por que Naruto lhe causa espécie?”

“Porque Naruto tem um monstro dentro dele, que ele não pode mostrar para ninguém — e o pior, tem que aceitar dentro dele”.

“É verdade. Aquela raposa gigante e demoníaca de nove rabos lá que ataca a vila dos narutos né. E que o pai de Naruto enfia dentro dele quando Naruto é apenas um bebê. Então ele cresce sem saber que tem essa gigantesca raposa dentro dele e tem que se virar a vida toda com essa raposa monstruosa dentro dele”.

O robô estava meio-que-cabeceando de sono a essa altura, tipo bêbado quando fala alguma coisa e depois se esquece e dorme. Mas ele teve forças pra falar com os olhos fechados:

“Naruto é órfão, Daniel. Eu. Ss-ou [sic]. Órfão”.

Me emocionei, acho. Ele já estava dormindo depois de largar essa. Mesmo sem saber se robôs sentem frio, botei um cobertor em cima dele e apaguei a luz. Continuei assistindo a obra-de-arte Naruto até o fim do episódio até que dormi eu também. Fazia acho que uns dez graus lá fora. Agora fazem quatorze. 

Depois do café bati na porta do quarto do robô e nada. Acho que eles já foram embora.