Melódicas dissonâncias – Crítica do espetáculo Tragédia e Perspectiva I – o prazer de não estar de acordo, por Guilherme Diniz

            Tragédia e Perspectiva I – o prazer de não estar de acordo, espetáculo dirigido pelo argentino Lisandro Rodríguez, com dramaturgia do brasileiro Alexandre Dal Farra, é, por assim dizer, uma arquitetura de pretextos. A maior parte dos assuntos ou dos temas discutidos não necessariamente vale por si. Importa fundamentalmente o próprio ato de discutir e apresentar os pontos de vista. As figuras que vemos em cena estão, na maior parte do tempo, circulando ou rodeando o objeto da discussão, não o atacando diretamente, pois o fato é que o tal objeto, ou a coisa em si (qual é mesmo?) não é primordial aqui. Um copo de água, os sapos ou os cachorros são principalmente subterfúgios, artifícios e, por vezes, convites indiretos para se levantar um debate e defender posições. Brotam, no palco, discordâncias e diferenças, ora sutis, ora exacerbadas, que evidenciam não apenas singularidades (muito inconstantes, por sinal), mas ruídos, tensões e atritos embutidos nas palavras, na comunicação e, inescapavelmente, nas relações.

            Um dos aspectos mais visíveis no espetáculo é, penso eu, o seu caráter de ensaio ou rascunho. Em primeiro lugar pelo seu acidentado processo de criação, iniciado em março de 2020, interrompido pela pandemia e retomado agora, dois anos depois. No palco, as cinco pessoas estão exercitando a própria linguagem, os seus obstáculos e possibilidades. Parecem testar os demais e a si próprios, questionando os limites do entendimento ou de uma compreensão cristalina das coisas. Os seus deslocamentos no palco, e o modo como todos eles modificam constantemente o espaço e a disposição dos objetos cênicos, indicam tentativas ou maneiras de experimentar diálogos, distanciamentos e aproximações entre si. Essas tentativas incertas vão se refletindo no espaço sempre em transformação. Os atores, em muitos momentos, parecem estar rindo de si mesmos, construindo ironias com a própria peça.

            A dramaturgia de Dal Farra elabora situações nas quais os cinco indivíduos explicitam não apenas as suas visões de mundo, mas, principalmente, as suas maneiras de lidar com a divergência, com os “outros”. Nesta espinhosa equação está a linguagem, o coração pulsante de Tragédia e Perspectiva I. Há, no espetáculo, encontros e desencontros com as palavras, seus significados e sentidos, suas ambiguidades, polissemias e tensões. Não são apenas as palavras que se mostram complexas e dolorosas. Difícil é a relação, a (im) possibilidade de escuta, de se afetar (e não apenas reagir instantaneamente) pela palavra do outro. Complexo é lidar com a presença daqueles e daquelas que direta ou indiretamente desestabilizam as certezas, apontando para distintos modos de viver e pensar o mundo. Na montagem, as relações entre linguagem e violência (física e simbólica) estão presentes.

            O percurso dramatúrgico vai construindo “diálogos” (o termo nem sempre se aplica) em que aqueles cinco sujeitos patinam, escorregam e se atritam no terreno instável da linguagem. Há trechos recheados de comicidade pelas brincadeiras com as convenções da língua (o certo é caçar ou pescar um peixe?); ou pelos efeitos imprevisíveis que as palavras nos causam (“custava abraçar ele?”). Neste processo, assistimos também aos relativismos e  banalizações em que tudo é tudo e qualquer coisa é qualquer coisa. Ou seja, quando os performers não conseguem minimamente estabelecer pontos de contato ou de partilha. Panes na compreensão vão surgindo sucessivamente. Neste processo, construir um sentido lógico (ou unívoco, melhor dizendo) para as coisas vai ficando mais e mais difícil. As dúvidas e estranhezas se avolumam. Uma certa lógica vai tropeçando…

[Eis que em meio a tudo isso, o despretensioso e imponderável celular de um espectador protagonizou um momento digno de nota. A voz feminina daquelas conhecidas assistentes virtuais (como a do Google) ecoou (quase confessando) em alto e bom som: “Eu não estou entendendo!” Irresistível! O envergonhado dono do celular o fez calar em meio a gargalhadas instantâneas. Se alguém tinha dúvidas de que o público é coautor da obra e dos seus sentidos, mudou rapidamente de ideia. O imprevisto como dramaturgia? O aqui-agora como possibilidade de, a qualquer momento, estremecer e provocar o espetáculo? Nem os atores resistiram a este elemento incalculável que, ao entrar em cena, adiciona mais sentidos para uma peça que visa investigar a linguagem com a precariedade que lhe é própria. O celular e sua robótica voz nos convoca a pensar não apenas nas relações vivas entre palco e plateia, mas em tudo aquilo que, imprevisivelmente, me atravessa, me afeta ou altera (mesmo que minimamente) minhas expectativas e planos. Ignorar ou dialogar com o inesperado, com aquilo que me surpreende e me convida a descartar certezas fixas? A peça também aborda estas problemáticas.]

            Contudo, há momentos em que o espetáculo produz uma verborragia maçante, além de certas redundâncias que, muito prolongadas, vão reduzindo a potência irônica e crítica dos jogos e situações construídos.

            Há uma presença destacada entre as cinco figuras no palco. É o Velho Aldo, interpretado pelo ator Aldo Bueno. Não se trata apenas de ser o mais longevo ator do grupo, embora essa condição não seja ignorável. Dono de uma simpatia muito singular, o Velho Aldo é o mais silencioso e o menos afobado de todos eles. O seu tempo/ritmo é outro. As suas opiniões nem sempre são unanimemente acatadas. Mas é como se ele conseguisse ao mesmo tempo estar no meio dos conflitos e se distanciar deles, a exemplo de sábio ermitão ou griot. Há uma cena particularmente sensível: Aldo, espirituoso, narra um “causo” (uma saborosa história de pescador, literalmente), conseguindo agregar as pessoas ao redor de sua voz. É um dos poucos momentos em que eles realmente escutam a fala de alguém. O humor e a delicadeza do velho narrador negro criam uma atmosfera de partilha que, sem romantizações, redimensiona as relações, ainda que momentaneamente.

            Tragédia e Perspectiva I estreia em um Brasil intensamente em convulsão. Divergências, diferenças e desigualdades estão cada vez mais acirradas, especialmente, no que se refere às disputas em torno do próprio país. Opressões históricas de gênero, raça, classe, sexualidade etc. ganham novas dimensões e estratégias com o avanço e o fortalecimento do nazifascismo no Brasil. A linguagem está presente em todos estes acirramentos. As reflexões propostas nas duas mesas do seminário da MITsp (Mesa 1 – O Meu país é o meu lugar de fala: Destruição e linguagem; Mesa 2 – Elaborações do presente: políticas da morte e imaginação política) apontam para o lugar da linguagem como mecanismo de desumanização e aniquilação daquelas e daqueles cujas vidas, corpos e pensamentos se insurgem ou não correspondem com o modelo cisheteronormativo e branco. A retórica do ódio, como explica o professor João Cezar de Castro Rocha, é uma realidade concreta em um país no qual grupos de extrema direita produzem, especialmente pelos discursos, a nadificação do outro como uma plataforma política. Do outro lado, vê-se também a presença da linguagem como possibilidade de enfrentar e reelaborar a morte, fazendo circular afetos transformadores. É preciso, pois, disputar imaginários!

            Diante deste panorama tão brutal, como construir modos coletivos não apenas de resistências, mas de projetar outros futuros para este país? Em entrevista publicada no site da MITsp, feita pela crítica teatral Luciana Romagnolli, Alexandre Dal Farra afirma que “Não se trata da discórdia pela discórdia, o que se busca, em cena, creio, é o Desejo. Acredito que, nesse tempo de dinâmicas ativas de diferenciação (…) que nos sugere a necessidade de que precisamos nos agrupar junto àqueles que parecem iguais a nós, há uma perda mais fundamental do que a da capacidade de discordar – e é a perda do desejo enquanto força política”.  

            Mas o que fazer quando a “opinião”, os “argumentos”, a retórica ou o discurso produzido defende ou apoia justamente a eliminação do “outro”? E quando o embate for inescapável? Toda mediação é possível ou desejável? E quando não for apenas uma questão de mera discordância, mas de real sobrevivência diante das violências do mundo? Como construir territórios comuns, partilháveis, fundados na solidariedade, sem que se converta em homogeneidade de pensamento? Estas são algumas questões que nos atravessam ao lidar com a peça. Fica cada vez mais evidente que linguagem também é negociação. Não só construir, mas desfazer (ou refazer) significados de mundo. Não há um fora. Todos nós, em posições diferentes, estamos emaranhados no conflito. É o que se vê em cena.