Narcisismo preto – Crítica do espetáculo Despacho Deferido, por Lorenna Rocha

Escolher um jogo de xadrez como metáfora para fazer ver as hierarquias raciais entre negros e brancos é cair num binarismo fragilizante para discutir racialidade nas perspectivas brasileiras. Mais desanimador é revestir esse método com um discurso antirracista ligado à negrofilia. Dizer-se “foda por ser negro” e intitular-se superior à branquidade, se já não mobiliza reflexões mais complexas sobre as questões raciais, sustenta menos ainda as escolhas formais de Despacho Deferido, da performer Jaqueline Elesbão.

Vestida com uma roupa branca que nos faz lembrar um peão do tabuleiro, Elesbião caminha próximo à projeção em que há várias pessoas negras, uma série de avatares com imagens digitais e fotografias antigas. Enquanto anda pelo palco com a postura parecida a de uma modelo de passarela, as imagens vão aparecendo e desaparecendo, com sons de flash. Em seguida, ela se senta em frente à tela, onde há vários quadros, que nos lembram as plataformas de reunião on-line. A performer passa a observar os comentários que o grupo faz sobre pessoas brancas. Há, então, uma inversão: por meio de frases irônicas e debochadas, o branco passa a ser visto como “negativo” e o negro como “positivo”. Essa troca de lugares não produz efeitos para além da reprodução do binômio racial que, no fundo, estrutura-se como uma mobilidade de hierarquias, não pelo desejo de sua radical implosão.

De dentro dessa operação simplista, as frases enunciadas formam uma miscelânia de comentários supérfluos que buscam afirmar positivamente a negrura, na medida em que se opõe ao signo da brancura. “Sabemos do nosso poder, sabemos a fraqueza deles”: movendo-se em frente à projeção de uma parede branca na qual escorre tinta preta, mais uma metáfora óbvia da performance, o preto no branco é o que dita a visão reducionista e apressada na forma como se apresenta os problemas raciais em Despacho Deferido.

O desvio dessa coreografia é justamente quando Jacqueline Elesbião confronta seus signos: ao jogar capoeira consigo mesma a partir da projeção audiovisual, ela ativa a duplicidade de sua imagem, que tanto pode ser espelho de si, quanto deixa escapar um ruído, uma nuance de conflitos internos. A ginga cria uma imagem menos cheia de convicção, com ambivalência. Se o estranhamento de erotizar um atabaque poderia ser o que causasse abertura ao risco, em sua pretensão de discutir, talvez, hiperssexualização, é no simples embate com a própria imagem que as dinâmicas do jogo parecem se reatualizar. Mas talvez esse seja um momento único. Fora disso, todo discurso superficial se estabeleceu como pura certeza. O circuito narcísico emerge e não dá espaço para criarmos relações: entre nós e Jacqueline; entre ela e as matérias com as quais interage; e, sobretudo, com as questões da racialidade.