A vulva e a bruxa
Crítica do espetáculo Vulva
Por Ana Bernstein
Vulva, concebido e dirigido por Mariana Senne, traz para a cena duas abordagens distintas sobre a desigualdade do gênero. A primeira explora o lugar simbólico da vulva no pensamento e na cultura patriarcal ocidental, a partir da leitura das obras de Liv Strömquist, A origem do mundo – uma história cultural da vagina ou a vulva vs. o patriarcado e da alemã Mithu M. Sanyal, Vulva – A Revelação do Sexo Invisível. O processo de criação incluiu também a realização de uma série de conversas entre mulheres durante uma residência artística, a exemplo dos processos de conscientização dos grupos feministas norte-americanos dos anos 1970. Foi a partir das discussões nesses grupos que surgiu o lema feminista “o pessoal é político” e que o debate sobre o corpo se tornou central para entender a dominação patriarcal e o lugar social das mulheres. Nas práticas artísticas dos anos 1970, o corpo constituiu-se não só como tema, mas como materialidade, instrumento e objeto de trabalho; seu uso configura-se, sobretudo, como ato político, um modo das mulheres retomarem seus corpos colonizados pelo patriarcado.
Algumas artistas buscaram criar imagens que correspondessem àquilo que Judy Chicago chamou de “núcleo central do imaginário feminino” e que em seu trabalho traduziu-se em imagens vulvares. Essa identificação do feminino (e do sujeito do feminismo) com o sexo biológico foi duramente criticada por muitas feministas como essencialista, por pressupor uma feminilidade original, um sujeito universal do feminismo. Um dos maiores desafios do feminismo, tem sido, justamente, formular uma política baseada na categoria “mulheres” e ao mesmo tempo interrogar essa categoria.
O espetáculo efetua uma entusiasmada revalorização do corpo feminino a partir do resgate da vulva. Nua no palco, Senne inicia a performance pedindo que sua colaboradora, Laura Salerno, desenhe os órgãos sexuais masculino e feminino. Embora o primeiro não ofereça dificuldades, o segundo demanda mais de uma tentativa, evidenciando nossa falta de familiaridade com sua representação. Uma longa lista de apelidos populares da genitália feminina é lida pela atriz, mas não inclui o termo vulva, que Senne reivindica politicamente. Apesar da objetificação a que o corpo da mulher é submetido na sociedade patriarcal, concebido e explorado como objeto de prazer do sexo masculino, o órgão sexual feminino, assim como o desejo e a agência sexual das mulheres, são, entretanto, permanentemente negados, invisibilizados. À questão da invisibilidade da vulva – e do uso inapropriado de vagina para designá-la -, seguem-se reflexões sobre o tabu da menstruação, considerado impuro por muitas religiões e culturas, com poder de contaminação – basta ver os anúncios de absorventes íntimos que prometem frescor e segurança-; o trabalho doméstico não remunerado e a desimportância dada ao clitóris, fonte de prazer sexual da mulher.
Vulva incorpora ainda as ideias de Silvia Federici apresentadas em seu livro magnífico Calibã e a bruxa, em que a autora investiga a relação entre o surgimento do capitalismo e a caça às bruxas no início da era moderna, quando foram exterminadas mulheres consideradas hereges, lésbicas, curandeiras, parteiras, esposas desobedientes, mulheres que viviam sós. Um verdadeiro genocídio, a caça às bruxas é vista por Federici como “um aspecto central da acumulação [de capital] e da formação do proletariado moderno”. A incorporação da tese de Federici cenicamente se dá pela leitura de uma longa citação e da figura da bruxa pelas duas atrizes, devidamente paramentadas com chapéus pontudos e vassouras, festejando ao final da performance, mas poderia ser melhor explorada na dramaturgia e na performance.
O espetáculo, ainda imaturo, não consegue reconciliar, tanto conceitualmente quanto na cena, a vulva e a bruxa. Além do tratamento superficial de questões como a visão negativa do sexo feminino, entendido na lógica patriarcal sobretudo como lacuna, uma visão baseada exclusivamente no olhar masculino (outra questão passada ao largo), a escolha da vulva como tema principal – mesmo com o contraponto marxista de Federici – acaba subscrevendo à identificação de um sujeito – universal – do feminismo com a anatomia feminina. A desigualdade de gênero, porém, não é determinada pela biologia, como as próprias performers reconheceram no Pensamento em Processo. Os sujeitos do feminismo – múltiplos, diversos – se constituem na interseção de gênero, raça, classe, religião e sexualidade. A anatomia, ao contrário do que pensava Freud, não é destino.